sexta-feira, 22 de março de 2019

Jovens com causa

Ana Maria Diniz

BLOGS
Ana Maria Diniz
A educação que vale a pena

Quando encontramos um propósito, um objetivo que faça a vida valer a pena, somos capazes de realizar coisas incríveis para nós mesmos e para o mundo; é isso que os jovens estão precisando descobrir



Sou uma pessoa naturalmente otimista, motivada, do tipo que não se deixa abalar facilmente, e a vida tem me ensinado a lidar bem com as adversidades. Mas, no dia seguinte ao massacre na Escola Estadual Professor Raul Brasil, em Suzano, quinta passada, acordei perturbada, desanimada, encafifada. Por que um rapaz de 17 anos comete uma brutalidade dessas? Que momento é esse que vivemos? O que podemos fazer para dar sentido à vida de jovens tão sem esperança a ponto de só se motivarem pela extrema violência?
Na ânsia de justificar tamanho descalabro, houve quem culpasse a escola, os pais, os os games, as redes sociais. Não estou aqui para julgar nem sentenciar ninguém, muito menos para arriscar mais um palpite simplista diante de uma situação tão complexa.  O que posso dizer, baseada em estudos sérios que li, é que os jovens estão mais deprimidos, ansiosos e propensos a tirar a própria vida do que em outras épocas. Os suicídios entre pessoas de 12 a 25 anos cresceram 40% no mundo entre 2000 e 2015, segundo a OMS. No Brasil, aumentaram 45%, entre 15 a 19 anos. A principal razão disso é a falta de propósito.
Jovens precisam de um propósito, de uma causa ou, como diria Cazuza, de uma ideologia para viver. Na verdade, todos nós precisamos, em todas idades. Propósito é o que nos que nos faz sair da cama, nos dá força para seguir em frente, justifica a nossa existência, mas às vezes é difícil encontrá-lo. E é na juventude, quando estamos em meio ao processo de construção da nossa identidade e enfrentamos dilemas relativos ao amadurecimento e ao futuro, que a necessidade de encontrar esse algo a mais, esse sentido que faça a vida valer a pena, se faz muito maior.
Quando encontramos uma causa, um objetivo muito claro, somos capazes de realizar coisas incríveis para nós mesmos e para o mundo. Quanto mais cedo se identifica essa razão de viver, mesmo que ela não seja definitiva, mas sirva para aquele momento, mais fácil é levar a vida adiante e ter prazer nessa jornada. É isso que os jovens estão precisando descobrir.
Dois dias depois da tragédia Suzano, centenas de milhares de estudantes do planeta saíram às ruas em 1 700 cidades de 106 países munidos de um propósito: protestar contra a inação dos governos no combate ao aquecimento global. Foi o maior já ato coordenado envolvendo adolescentes de que se tem registro. O movimento, batizado de Fridays for Future, foi inspirado na sueca Greta Thunberg, de 16 anos, que desde agosto, todas às sextas-feiras, não vai a escola para protestar contra as mudanças climáticas em frente ao Parlamento da Suécia. Na semana passada, a garota foi indicada ao Prêmio Nobel da Paz.
Nem todo o propósito precisa grandioso a ponto de mudar o mundo. Pode ser um algo mais modesto, mas significativo – um rumo a seguir, uma motivação ou objetivo de mais longo prazo. Podemos inclusive ter vários longo da vida, não apenas um. Infelizmente, são poucos os jovens que conseguem encontrar um tão facilmente. As escolas e as famílias têm um papel crucial nesse sentido e deveriam dar suporte a cada jovem nesse processo de descoberta. É por isso que eu gosto muito no modelo de educação integral de Pernambuco. Nas escolas da rede pública, o Ensino Médio é focado no protagonismo do aluno e na elaboração de um projeto de vida que o ajude a descobrir seus caminhos.
O desafio que episódios como o de Suzano nos impõem é conversar com os jovens, ouvi-los, para despertar dentro de cada um a ideia de de que vale muito a pena ser adulto e envelhecer nesse mundo conturbado, onde cada um tem um papel fundamental.

sábado, 9 de março de 2019

Pensamento crítico e colaboração são mais importantes que fórmulas de matemática na educação do século 21, diz especialista do MIT

Jennifer Groff
Jennifer Groff defende o ensino baseado em competências
Para o aluno do século 21, habilidades como pensamento crítico, colaboração e criatividade são muito mais importantes que o ensino por meio de fórmulas prontas ou conteúdo memorizado e sem contexto. Conteúdos tradicionais como matemática ou mesmo mais novos, como linguagem de programação, de nada adiantam se forem ensinados sem aplicação no mundo real e sem ensinar as crianças a raciocinar.
É o que diz a especialista americana em educação Jennifer Groff, co-fundadora do Center For Curriculum Redesign e pesquisadora do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), onde ela lidera o desenvolvimento do design de jogos para uso em sala de sala.
"Você não pode ensinar essas coisas (português, matemática), fora de contexto, para crianças e esperar que no final elas entendam todo o resto e sejam esses unicórnios mágicos que conseguem fazer tudo. Elas precisam ir adquirindo experiências com problemas reais ao longo da vida", diz.
Groff é autora de estudos sobre currículo, ensino personalizado e sobre como redefinir ambientes de aprendizagem e experiências por meio de inovações e tecnologias educacionais. No ano passado, ela foi nomeada uma das 100 maiores influenciadoras em tecnologia da educação pela revista Ed Tech Digest.
A espcialista também atua desde 2017 como diretora pedagógica da Lumiar, organização de escolas e tecnologias de aprendizagem criada no Brasil.
Em entrevista à BBC News Brasil em São Paulo, Groff explica porque um número cada vez maior de especialistas defendem o chamado Ensino Baseado em Competências (EBC), adotado pela Lumiar, que foca em desenvolver habilidades e raciocínio em vez de memorização de conteúdo.
No sistema, também defendido por ela, os alunos aprendem por meio da realização de projetos, em vez de receberam um conteúdo pronto dividido em disciplinas. Esse ensino também não depende de coisas como livros didáticos ou divisão dos alunos em séries.
A metodologia foi escolhida como uma das mais inovadoras pela OECD (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) em 2017 e está sendo implementada em escolas de países como Holanda, Estados Unidos, Inglaterra e Finlândia.
Apesar das diferenças, as escolas que seguem o método se adaptam para não deixar de seguir as diretrizes obrigatórias de educação dos países – no caso do Brasil, a Base Nacional Comum Curricular, documento do Ministério da Educação elaborado ao longo dos últimos cinco anos que deve servir de base para os currículos e propostas pedagógicas de todas as escolas públicas e privadas do país.
Groff também diz que ficou preocupada com a forma como o novo ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, pediu para os alunos cantarem o hino nacional e falarem o slogan de campanha do Presidente Jair Bolsonaro.
Segundo Groff, o pedido de total fidelidade à pátria "soa como fascismo".
"Ele disse de uma forma que parecia dizer 'total fidelidade ao Brasil'. Soa como fascismo. É assustador", diz ela, que acredita que as prioridades do novo governo na educação deveriam ser outras, como ensinar as crianças e pensar de maneira sistêmica e ter um pensamento ético.
Sala de aula
O modelo de educação por competência tem sido aplicado em escolas de elite no mundo todo – mas ainda está começando
A seguir, os principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil - O método tradicional de ensinar atende às necessidades educacionais dos alunos?
Jennifer Groff - Há décadas de pesquisas científicas sobre como as pessoas aprendem, e a forma como estruturamos escolas e outros ambientes de aprendizado frequentemente não está alinhada com essas descobertas.
As estruturas escolares tradicionais, na verdade, levam as crianças no sentido oposto ao que sabemos hoje ser a forma como elas aprendem melhor. As escolas tradicionais dão o mesmo ritmo para todo mundo, um tipo de aprendizado muito linear e descritivo, dividindo as aulas artificialmente em matérias. O currículo é muito rígido e os professores ensinam muito rápido para cobrir o currículo todo. E com frequência esse conteúdo não tem contexto (onde isso se aplica no mundo real?) e é todo compartimentado: aprenda o que tem que aprender, faça a prova e vá para a próxima. E aquele assunto nunca é retomado.
Durante 12 anos as crianças simplesmente dizem: 'bom, me diga o que fazer, o que aprender, pra onde eu vou?' Literalmente treina as crianças para não direcionarem suas próprias vidas. O método tradicional ensina que existe uma resposta única, ou seja, uma resposta certa e uma errada. Que tipo de problemas na sua vida, ou no mundo, são assim? Quase nenhum! São todos complexos, multifatoriais, e as soluções não são certas ou erradas, elas têm prós e contras, e consequências. Então o mundo real é muito mais "bagunçado".
BBC News Brasil - No Brasil, temos uma discussão sobre currículo focado em matemática e português, por causa de mudanças no nosso ensino médio. Você acredita que o foco nessas disciplinas dá às crianças habilidades que elas precisam no século 21?
Groff - É claro que as crianças precisam saber ler, escrever, fazer contas. Mas a ideia de focar tanto nisso em detrimento de todo o resto é bem documentada na ciência como problemática. Eu digo com frequência para os pais: pense em todas as coisas que te desafiam na vida real. Em todos os tipos de problemas com que estamos lidando em nosso país e globalmente: aquecimento global, questões de direita e esquerda... Como apenas português e matemática seriam suficientes para equipar as crianças a lidarem com essas coisas? E no trabalho! Olha as habilidades que precisamos para todos os nossos trabalhos. Você não pode ensinar essas coisas (matemática, português) fora de contexto para crianças e esperar que no final elas entendam todo o resto e sejam esses unicórnios mágicos que conseguem fazer tudo. Elas precisam ir adquirindo experiências com problemas reais ao longo da vida.
BBC News Brasil - E quais são essas habilidades necessárias? Quando se fala em competências para o século 21, muitos pensam em robótica, programação...
Groff - Não, não estamos falando disso. Há quatro habilidades consideradas centrais: comunicação, colaboração, criatividade e pensamento crítico. É bem óbvio que você precisa disso em muitas partes da vida. Comunicação para conversar com seus colegas no trabalho, ou para saber como tratar com um advogado, por exemplo. Colaboração é necessária porque não trabalhamos isolados, mas frequentemente em equipe. Criatividade serve para pensar em soluções novas e inovadoras. E pensamento crítico para conseguir criticamente resolver problemas, para pensar em soluções efetivas e sinificativas para problemas no trabalho ou na vida.
Mas há muita coisa além disso. Quando me perguntam: "Se você pudesse mudar o currículo em uma coisa, o que seria?", eu sempre digo: adicionar o pensamento sistêmico. É aprender a trabalhar com sistemas complexos, que não são lineares. Há dinâmicas que você pode aprender, que pode observar e se tornar mais bem preparado para lidar com eles. O nosso mundo todo é feito de muitas camadas de sistemas complexos.
Há também o pensamento ético, ou pensamento com perspectiva social. Que é conseguir ver através dos seus olhos e através dos olhos do outro ao mesmo tempo, tomar decisões considerando como os outros são afetados. Claro que você ensina essas coisas (robótica, programação) também, mas a beleza do Ensino Baseado em Competências é que o professor não precisa ser especialista em robótica, ou agricultura hidropônica, ou no que quer que seja o projeto escolhido para o momento. O professor se preocupa com o desenvolvimento geral do aluno traz os especialistas da comunidade, inclusive envolvendo os pais.
BBC News Brasil - Como essas competências devem ser ensinadas?
Groff - Nosso modelo não é como encher um balde de conteúdo, que é como a maioria das pessoas pensa a educação. As crianças nem guardam o conteúdo... Há um famoso vídeo em que pegam estudantes Universidade Harvard e dão uma bateria, uma lâmpada, um fio e dizem: 'faça acender'. E eles não conseguem realizar algo que depende de compreensão básica de circuitos! A maior parte do conteúdo é inútil porque a maioria de nós não se lembra da maior parte das coisas ensinadas na escola.
O que importa são as habilidades e competências que você ganha trabalhando nesses projetos. Somos focados em criar experiências complexas para as crianças aprenderem a raciocinar e que reflitam o que será exigido delas no mundo real. Então, se há uma discussão ideológica acontecendo no mundo real, ela deve ser feita na escola também, sem escolher um lado, e obviamente adaptada para a idade delas. Não estamos preocupados se você se lembra de fatos e conhecimentos, mas se tem as habilidades necessárias para lidar com o mundo complexo.
BBC News Brasil - Quais pontos do desenvolvimento dos alunos mostram que esse método é realmente melhor?
Groff - A maneira como eles falam e resolvem problemas, como raciocionam e discutem, como se aprofundam em um tema e dialogam, e perguntam, é mais avançada, mais complexa e mais cheia de nuances do que podemos ver em outras escolas. Eu brinco que, quando converso com alguns alunos de 14 anos das escolas que usam esse método, eu digo: "Vem trabalhar pra mim!" (risos). Porque a forma como elas abordam problemas é algo que eu gostaria de ver em pessoas da minha equipe.
BBC News Brasil - Como equilibrar essa forma de aprendizado com exigências do ensino tradicional, a exemplo de provas e vestibular?
Groff - Olhamos para os elementos gerais que estão nas provas, para quais habilidades serão testadas na crianças para que elas possam ser aprovadas em universidades. Garantimos que eles terão as habilidades necessárias para ir bem nessas provas. E isso acontece, na maior parte das vezes, apenas participando, se aprofundando nesses projetos. Nos preocupamos com alfabetização e matemática especificamente porque há um nível de alfabetização básico para poder fazer qualquer um desses projetos. E é preciso fazer com que os professores estejam capacitados nessas áreas.
BBC News Brasil - Por que então a educação mais focada em competências não é usada de forma mais ampla?
Groff - Tecnicamente, o modelo [usado na educação] atual é do século 18. Fizemos alguns avanços e cada escola é um pouco diferente da outra. Há algumas que ainda estão muito no passado, outras mais avançadas. Minha primeira tese de mestrado foi sobre isso: por que as escolas não mudam? E a resposta é que há muitas barreiras nos sistemas educacionais. Há políticas estaduais, municipais e federais que determinam o que as escolas podem fazer, o que elas devem fazer, onde elas podem inovar. Mas também é uma questão de ser simplesmente uma cultura muito avessa ao risco. São crianças pequenas, entende? São os filhos das pessoas. Você vai querer arriscar essa inovação com elas?
E é por isso que nos EUA há muito investimento em pesquisa para entender o que é melhor para quem está aprendendo. Mas ter clareza do que é melhor não significa necessariamente que a melhoria vai ser aplicada. As pessoas têm resistência à mudança. Especialmente porque os pais frequentemente não entendem o processo de aprendizado a fundo, ou como funciona a pesquisa em educação. Há muitos fatores que precisam se alinhar para permitir que a escola mude. No fim, o que possibilita a mudança são recursos, e o suporte financeiro na indústria da educação não é tão alto. Não é um negócio tão grande, não dá tanto dinheiro quanto o Google. Então o investimento é menor, demora mais.
Mas acho que estamos em um momento de virada. Chegamos a um ponto em que o mundo mudou tanto que é extremamente claro que só se preocupar com passar no vestibular não está dando conta, e que precisamos preparar as crianças com habilidades mais amplas e profundas em um mundo tão complexo. Acho que os pais estão entendendo isso.
BBC News Brasil - O Brasil está em que ponto desse processo?
Groff - Brasil é um caso engraçado, que ao mesmo tempo permite inovações, como a Lumiar, e tem muitos locais e demandas tradicionais. Quando estava no MIT, fiz parte de uma pesquisa da Fundação Lemann analisando a Base Nacional Comum Curricular, que é bem tradicional. Quando você olha para o sistema daqui, ainda se espera que todas as escolas usem coisas como livros didáticos. Só esse fato já torna a educação por competência muito difícil. As pessoas ainda não sabem o que é o ensino baseado em competências, e muitas escolas particulares e públicas ainda querem um sistema tradicional.
BBC News Brasil - Como é possível organizar um ensino sem livros didáticos em um país tão grande e complexo como o Brasil?
Groff - Há dois jeitos de fazer isso. Muitos distritos nos EUA estão criando diretrizes de ensino bastante diferente dos padrões nacionais, e a maneira como você elabora esses documentos dita como o ensino será. E muitas escolas nos EUA estão pegando esses documentos e elaborando novas estruturas baseadas em competências. O objetivo é personalizar o ensino, levar em consideração as necessidades de cada criança. Não estamos educando crianças em uma linha de produção, elas não aprendem tudo do mesmo jeito, na mesma sequência, em grupos. Aprendem como flores desabrochando, crescem com seus próprios caminhos, em seu tempo, com diferentes habilidades e de diferentes formas. Uma criança pode andar em seu próprio ritimo desde que tenhamos um método pra saber se elas estão avançando.
BBC News Brasil - Até agora, o ensino por competência está, de maneira geral, bastante restrito à elite. Um ensino diferente para cada criança na rede pública não gera o risco de produzir mais desigualdade?
Groff - A desigualdade é afetada por muitos outros fatores, como recursos e políticas regionais. É algo muito mais complexo do que isso. A esperança é que seja o contrário, que esse tipo de ensino consiga abrir a porta para mais igualdade. Você não está só pegando professores que estão lá e mandando eles ensinarem diferente. Há todo um preparo. Professores que ensinam por EBC (Ensino Baseado em Competências) têm, em geral, mais habilidade. Então somente as escolas de elite têm até agora implementado esse tipo de ensino – embora tenhamos uma escola pública no Brasil com o método Lumiar (a Escola Municipal Antônio José Ramos, em Santo Antônio do Pinhal, no interior paulista). Mas estamos, no entanto, tentando encontrar recursos e estruturas para mais escolas aplicarem esse método. Isso deve trazer mais igualdade. Mas, como qualquer coisa, tudo depende da forma como isso vai ser aplicado. Essa transição de modelo de ensino não significa necessariamente que haverá uma mudança na qualidade, tudo depende de como esse tipo de política é aplicado e como os recursos são usados.
BBC News Brasil - Como discutir currículo e método quando as escolas muitas vezes não têm coisas básicas, como merenda e cadeiras?
Groff - Quando a discussão é essa, bom, discutir currículo é uma conversa sem sentido. Porque se você não tem alimento ou abrigo, você não está preocupado com a critividade. Essa é uma discussão separada sobre orçamento para educação.
Mas as pesquisas mostram que as "charter schools" (escolas que recebem dinheir público mas são operadas por instituições privadas) nos EUA, que são as que estão tentando servir as pessoas em maior fragilidade social, mesmo quando conseguem intensamente oferecer ensino de inglês e matemática, percebem ganhos, mas não tão grandes. Esse ensino não é suficiente para a universidade e nem para o mundo real.
BBC News Brasil - Há um movimento no Brasil que quer proibir educação sexual e discussão sobre gênero nas escolas. Como você avalia isso?
É um assunto que não é especifico ao EBC, que é um método no qual é possível construir projetos sobre qualquer assunto. A discussão não tem a ver com o modelo, é mais uma questão sobre se deveríamos ou não ensinar esses assuntos.
BBC News Brasil - E qual sua opinião?
Groff - Há questões sistêmicas e de saúde pública para não privatizar educação sexual e coisas como essas, então eu gostaria que esse assunto fosse tratado nas escolas públicas. Deveria sim.
BBC News Brasil - Quais questões de saúde pública? Você poderia explicar melhor?
Groff - Desculpe, é que me parece algo óbvio. É uma questão de saúde pública que pode gerar problemas sociais se a massa da população não entender sobre a transmissão de doenças sexualmente transmissíveis, por exemplo. Isso sozinho é um motivo para haver educação sexual nas escolas. E, novamente, tudo o que é uma questão no mundo deve ser uma questão na escola. É claro, de forma apropriada para cada idade.
Se uma escola vier para mim e disser que quer ensinar criacionismo, eu teria mais dificuldade. Mas, no fim, são filosofias que existem no mundo. São coisas que as crianças vão encontrar no mundo, porque essas pessoas (que acreditam em criacionismo) estão no mundo. Então pode ser um tópico. Nenhum assunto é proibido. Por que não falar sobre a diferença filosófica? O que acontece quando as pessoas têm essas diferenças de opinião na sociedade? Está tudo lá fora, então por que não deveria estar aqui dentro?
BBC News Brasil - Mas como conhecimentos equivalentes?
Groff - É uma boa pergunta. Essa é a beleza da escola e da educação por competência. Nada tem uma resposta linear ou correta. É uma discussão complexa. O que acontece é que a sociedade simplica essa questões em brigas, em dois lados. O necessário é que as crianças tenham discussões complexas com acesso a todas as informações possíveis porque é isso que está acontecendo no mundo real. Eu acho muito melhor que as crianças estejam preparadas para o mundo real do que que recebam uma resposta pronta. Não damos respostas, nós criamos oportunidades para que elas mergulhem fundo nos assuntos.
BBC News Brasil - Há no Brasil um movimento chamado Escola sem Partido, que diz que é possível ter uma 'educação sem ideologia'. O que acha disso?
Groff - Eu acho que depende do que você considera ideologia. A filosofia que assumimos é que tudo porque ser discutido na escola porque o objetivo do ensino é ir a fundo nos problemas. Mas eu não sei o suficiente sobre como essa discussão está sendo feita aqui, precisaria pesquisar. É uma reação contra ideologia de direita na educação?
BBC News Brasil - Não, é um movimento de direita que diz que há doutrinação de esquerda nas escolas brasileiras.
Groff - Entendi. É uma propaganda enganosa dizer que é uma escola sem ideologia.

A fábrica de ilusões

Ensino superior precisa de visão de futuro, regras claras, mais flexibilidade e mais transparência

SIMON SCHWARTZMAN É SOCIÓLOGO E MEMBRO DA COMISSÃO NACIONAL DE AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR (CONAES)

No Brasil todos querem ganhar na loteria, e muita gente joga, mesmo que pouquíssimos ganhem. No ensino superior é parecido: cerca de 7 milhões se candidatam todo ano ao Enem, disputando cerca de 300 mil vagas em universidades federais. Muitos dos que não passam vão para escolas privadas, em alguns casos com bolsas ou créditos educativos. Em 2017, 2,5 milhões de pessoas entraram em cursos superiores, a grande maioria no setor privado, e 1,2 milhão se formaram. Dados do Inep mostram que depois de quatro anos 31% dos estudantes haviam abandonado o curso e só 11% se formaram. O abandono é muito maior nas instituições privadas (37%) e em áreas como ciências matemáticas e computação (40%), ciências sociais (35%) e cursos à distância (42%).
A peneira, na verdade, começa antes. Hoje existe escola fundamental para todos, mas a qualidade, sobretudo nas redes municipais e estaduais, é muito ruim, e a grande maioria chega ao ensino médio mal sabendo escrever e fazer contas. Em 2018, 3 milhões de jovens entraram no ensino médio, mas só 2,3 milhões chegaram ao terceiro ano. Outro 1,4 milhão, de mais velhos, se matriculou em cursos de educação de jovens e adultos, em que a grande maioria não se forma – e a qualidade é pior ainda. É pior do que loteria, porque é um jogo de cartas marcadas: filhos de famílias mais ricas e educadas, que estudam em escolas particulares ou passam nos “vestibulinhos” das escolas federais, têm mais chances de conseguir boa nota no Enem, passar na Fuvest, escolher os melhores cursos ou ir para uma escola superior privada de elite. Já a grande maioria fica pelo caminho.
Ter educação superior hoje no Brasil significa ter uma renda média do trabalho de R$ 4.600 mensais, comparada com R$ 1.600 dos que têm nível médio e R$ 1.350 de quem só tem o fundamental. Mas depende muito do curso e da faculdade que a pessoa seguiu: cerca de metade das pessoas de nível superior trabalha em profissões de nível médio, com renda próxima de R$ 2.400. Para ter maiores benefícios é preciso entrar numa carreira disputada, como medicina ou engenharia, ou passar na prova da OAB ou num difícil concurso para cargo público: é para poucos.
Além do imenso custo pessoal para os milhões que gastam anos, dinheiro e esperança tentando uma carreira que nunca vão atingir, existe o custo público de manter tudo isso. Segundo dados da Secretaria do Tesouro, os gastos da União em educação superior passaram de R$ 32 bilhões a R$ 75 bilhões entre 2008 e 2017, em sua grande maioria na forma de salários para professores de tempo integral das universidades federais, enquanto o crédito educativo, concedido de forma indiscriminada ao setor privado até recentemente, chegou a mais de R$ 30 bilhões em 2016 e 2017. Tudo isso para financiar um sistema com 30% ou mais de ineficiência, sem falar na qualidade e pertinência do que é ensinado. O Ministério da Educação mantém um sistema extremamente complexo e caro de avaliação do ensino superior, com as provas do Enade e a divulgação de diferentes índices que não nos dizem quais cursos são efetivamente bons ou ruins, nem qual a empregabilidade dos formados, ou a eficiência das instituições no uso dos recursos públicos.
Outra ilusão é a suposta “indissociabilidade do ensino, da pesquisa e da extensão”, consagrada no artigo 207 da Constituição. Em seu nome, 87% dos professores das instituições federais e 80% das estaduais têm contratos de trabalho de tempo integral, e a maioria de dedicação exclusiva, elevando enormemente os custos, embora a pesquisa que mereça esse nome – regular, de padrão internacional e de impacto social e econômico – esteja concentrada numas poucas instituições, existam poucas patentes e grande parte dos artigos produzidos termine enterrada em revistas que ninguém lê. Em seu nome, também, as instituições de ensino são avaliadas pelo que elas não querem, não sabem fazer nem precisam – quantos professores doutores têm, quantos papers produzem, quantos cursos de pós-graduação oferecem.
Não será fácil sair desta situação. Não é possível reverter o relógio e limitar o acesso à educação superior, mas é possível melhorar as avaliações e oferecer uma gama de alternativas de estudo e formação para pessoas que chegam ao ensino superior com diferentes condições e necessidades. O “modelo de Bolonha”, adotado pela União Europeia e muitos outros países, consiste num primeiro ciclo de três anos de amplo acesso, seguido por mestrados ou cursos mais avançados. Além disso, existem amplos sistemas de formação vocacional que começa no ensino médio e continua no pós-secundário, em institutos e centros especializados. Transitar do sistema tradicional de cursos de quatro ou cinco anos para esse modelo não é fácil, mas é possível, se houver uma visão clara do que se pretende e estímulos adequados para que as instituições respondam.
O setor privado, que trabalha numa perspectiva empresarial, já se vem adaptando às novas condições, compensando a perda dos subsídios do crédito educativo por cursos à distância e ampliando a oferta de cursos “tecnológicos” de curta duração. O setor público necessita, sobretudo, de incentivos corretos para disputar e usar bem seus recursos, com contratos de gestão para cumprir metas diferenciadas e realistas, novas formas de governança e flexibilidade legal e institucional para responder a esses incentivos. E os estudantes devem compartir a responsabilidade e os custos de sua educação, sobretudo por meio de créditos educativos associados à renda futura.
O mercado tem suas vantagens, mas também problemas quando a competição se dá por baixos custos e venda de ilusões. O ensino superior brasileiro precisa de uma visão de futuro, regras claras de funcionamento, mais flexibilidade e mais transparência. E o Ministério da Educação, que é parte, talvez não seja a melhor agência para regular esse sistema.

domingo, 3 de março de 2019

Educação: 10 tendências que estão mudando o ensino em todo o mundo



https://www.bbc.com/portuguese/geral-47321804
Quais são as novas tendências em matéria de educação e como vão afetar os sistemas educacionais de todo o mundo?
Andreas Schleicher, diretor de educação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e coordenador do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa, na sigla em inglês), explica quais são as grandes questões sociais, econômicas, políticas e tecnológicas que se colocam para escolas de todo o mundo.

1. Lacuna entre ricos e pobres versus mobilidade social

A lacuna entre ricos e pobres está aumentando, e estão se ampliando os grupos com privilégios extremos, assim como aqueles que sofrem de enormes privações.
Essa desigualdade se reflete nas escolas. Nos países da OCDE (que tem 36 membros), os 10% mais ricos têm uma renda 10 vezes maior do que os 10% mais pobres. Esta divisão é um dos maiores desafios dos sistemas educacionais.
Como equilibrar essa desigualdade econômica com a missão da escola de oferecer um acesso mais justo a oportunidades?

2. Aumento do consumo na Ásia

A riqueza pode não estar distribuída equitativamente, mas está aumentando, especialmente na Ásia. A classe média global está crescendo, e 90% de seus novos integrantes estarão na China e na Índia.
Como a economia global mudará quando as populações mais educadas do mundo provenham da Ásia e não da América do Norte e da Europa?
O que vão querer estes novos consumidores ricos de suas escolas? As universidades estarão preparadas para se expandir e responder a esta maior demanda?

3. Crescimento da imigração

Há muito mais gente imigrando, e a Ásia assumiu o lugar da Europa como o destino mais popular dos imigrantes. Esta mobilidade traz junto a diversidade cultural, a energia e a ambição dos recém-chegados, mas também gera muitos desafios.
Como poderão as escolas apoiar os estudantes que chegam de diferentes partes do mundo? Quais questões isso levanta em todo da identidade e a integração? Terão as escolas um papel mais importante no ensino de valores comparitlhados?

4. Financiamento

A pressão para encontrar financiamento será uma grande questão para os sistemas educacionais. As escolas deverão tomar decisões a longo prazo sobre como gastar seu orçamento, sobretudo com o aumento das exigências e expectativas.
Quem deverá pagar para que mais estudantes cursem a universidade? E o que acontecerá caso tenham que fazer cortes?
Os indivíduos também deverão entender os riscos de repentinas crises econômicas e recessões, principalmente em momentos em que crescem as dívidas pessoais.

5. Abertura vs. isolamento

A tecnologia digital pode conectar mais gente do que nunca, contruindo vínculos entre países e culturas. Ou esta é a teoria, ao menos. A tecnologia também pode fazer com que o mundo seja mais volátil e incerto.
Poder escutar uma variedade de vozes fomenta a democracia, mas também concentra um poder sem precedentes na mão de um pequeno número de pessoas.
Quando as notícias e informações são personalizadas para nós por algoritmos, isso faz com que a gente só tenha acesso a opiniões de pessoas que pensam de forma parecida e se afaste de quem pensa o oposto.
Como as escolas e universidades farão para promover uma maior abertura a ideias diferentes?

6. Humanos de primeira classe ou robôs de segunda?

Já foram feitos vários alertas sobre a ameaça da inteligência artificial para os empregos de hoje em dia. Mas os sistemas educacionais precisam equipar os jovens com ferramentas para que possam se adaptar e modernizar em um mercado de trabalho em mutação.
Surgirão muitas perguntas em torno de como desenvolver habilidades humanas que não possam ser replicadas por robôs.
Como garantir que características humanas como imaginação, sentido de responsabilidade ou inteligência emocional possam ser aproveitadas junto com o processamento da inteligência artificial?

7. Lições ao longo da vida

A expectativa de vida está aumentando, e um mercado de trabalho menos previsível faz com que cada vez mais adultos tenham que voltar a se capacitar profissionalmente.
Será necessário dar mais atenção ao aprendizado a longo prazo, para que os adultos estejam preparados para mudar de trabalho e se aposentar por mais tempo.
Desde 1970, a média de anos de aposentadoria em países da OCDE aumentou de 13 para 20 anos.
Em décadas recentes, houve grandes mudanças no âmbito profissional, e praticamente desapareceu o "emprego pra toda a vida".
Mas, na realidade, os adultos que mais precisam de educação e treinamento, ou seja, aqueles menos qualificados, são os que menos têm chances de ter acesso a isso.
É um problema frequentemente ignorado, mas será cada vez mais importante que as habilidades de uma pessoa coincidam com os requisitos dos empregos disponíveis.

8. Conectados ou desconectados?

A internet é uma parte integral da vida dos jovens. Em alguns países, a quantidade de tempo que os jovens de 15 anos passam conectados duplicou em três anos. Muitos adolescentes dizem sentir-se mal se ficam desconectados.
Mas a educação ainda tem que aceitar a presença permanente da internet. Qual é o papel que ela deve ter na educação? Como reduzir seus efeitos negativos, como o cyberbullying e a perda de privacidade?

9. Ensino de valores

Todo mundo espera que a escola ensine valores. Mas, em um mundo cada vez mais polarizado, quem decide quais devem ser ensinados?
O mundo digital tornou possível que mais gente expresse suas opiniões, mas isso não garante que possam acessar informações confiáveis e balanceadas ou que estejam dispostos a escutar outras pessoas.
Como uma pessoa pode diferenciar fatos e ficção? Como a escola podem diferenciar opiniões e informações objetivas? As escolas devem ser politicamente neutras ou promover ideias ou formas de pensamento específicas? E qual classe de virtudes cívicas são exigidas pelas democracias modernas?
10. Temas irrelevantes para muitos

A ONU diz que há cerca de 260 milhões de crianças que perdem a chance frequentar a escola. Para elas, estes temas serão irrelevantes, porque nem sequer têm acesso a uma escola ou estão escolas com um nível educacional tão baixo que saem dela sem ter os conhecimentos mais básicos de escrita e matemática.