domingo, 28 de abril de 2019

O fundo do poço

Imagem Leandro Karnal

COLUNISTA
Leandro Karnal

A doença psíquica pode ser combatida, o preconceito parece ser mais complicado
Faz vários anos que li O Demônio do Meio-Dia – Uma Anatomia da Depressão (Cia das Letras). A obra virou um best-seller e foi considerada, pelo The Times, um dos cem melhores livros da primeira década do nosso século. 
O livro é grande e, mesmo assim, pequeno para tudo que deve abarcar. A narrativa é completa: inclui a radiografia da depressão do autor, a análise científica e médica e reflexões amplas. 
Citei a obra em palestras e em vídeos. Como leigo, pareceu-me muito boa. Isso bastou para que muitos enviassem perguntas sobre depressão para mim, um historiador! Suspeito que a abundância de consultas tenha origem na propagação do drama entre nós. 
Tenho insistido naquilo que aprendi com especialistas. Depressão não é frescura ou falta do que fazer. Solomon é enfático: levava uma vida produtiva e feliz até que, um dia, começou a ser atacado por uma tristeza profunda que esgotou sua vontade. Não conseguia usar o telefone, tomar um banho ou sair do quarto. Seu corpo virou chumbo. Não era tédio ou preguiça. Até então, o autor se declarara um homem muito dedicado ao trabalho. Temos muita compreensão para aceitar males físicos e pouca paciência para os psíquicos. 
O mal é forte. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima em 4,4% da população mundial afetada (dados de 2015, a situação pode ter se agravado). No Brasil, o número salta para 5,8 %. Isso representa uma cidade como São Paulo povoada só pelos atingidos pela doença. Somos campeões latino-americanos de depressão e de ansiedade. A mesma OMS estima que, em poucos anos, a depressão será a mais incapacitante de todas as enfermidades. 
A depressão pode levar ao suicídio. Entre 15 e 29 anos, retirar a própria vida é a segunda maior origem de óbitos. Nem todo suicida é depressivo e nem todo depressivo é suicida, porém, o caso grave vai provocando um vazio tão doloroso que, lentamente, começa a apontar a morte como fator de libertação. 
A depressão mata, este é o maior risco. A depressão provoca internações e incapacidades laborais, este é um dano enorme. A depressão causa uma infelicidade recorrente nas suas vítimas. Seja leve, moderada ou grave, ela é um obstáculo à vida plena. Pior: ela causa vergonha! Uma leucemia é uma doença gravíssima que desperta solidariedade entre quase todos os envolvidos. O deprimido quase sempre tem dificuldade de contar seu problema. Sempre parecerá ao leigo que é falta de vontade ou até falta do que fazer. “Um tanque de roupa suja resolveria”, quantas vezes já se ouviu essa frase infeliz. O deprimido luta consigo e com os outros e sente, nos olhares ao redor, a condenação implícita de muitos. Ser vítima da depressão é combater em muitas frentes.
Meu amigo Ricardo Krause é psiquiatra e me forneceu mais dados. A depressão maior altera até o quadro orgânico do cérebro. O mal pode aparecer muito cedo, antes dos 10 anos de idade. Depressão não diz respeito à quantidade de tristeza sentida; importa mais a qualidade do sentimento negativo. Por fim, ele ensinou que o especialista Aaron T. Beck batizou a tríade depressiva clássica: visão negativa de si, do mundo e do futuro. Eis o tripé da dor total. 
Vivemos em uma época na qual a infelicidade é considerada algo excepcional e evitável. Para todos nesta geração de redes sociais, só há sorrisos e alegrias. Nunca fomos tão relutantes em admitir o sentido trágico da existência. Assim, uma pessoa que tenha perdido alguém ou que passe por desemprego tem uma reação natural de tristeza. A fase de luto e seu desfile de lágrimas e angústias é natural. Estamos confundindo tristeza com depressão. Elisabeth Kubler-Ross estabeleceu que o luto clássico tem uma trajetória de cinco etapas: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Nem todos apresentam essa ordem e nem todos apresentam todos os sintomas. A notícia de que você tem um mal incurável ou a perda de alguém que você amava pode desencadear o ciclo do luto previsto pela pesquisadora suíça. A rigor, não se trata de depressão como doença psíquica. Dor com causa objetiva, dor que passa, dor que dilacera mas que vai ficando menor com o passar do tempo é tristeza, por mais terrível que seja. Depressão é outra coisa. Pode ter um gatilho ou não. Na maioria das vezes, piora sem acompanhamento profissional ou, em casos graves, sem medicamentos apropriados. Raramente, o indivíduo tem condições de sair da depressão sozinho.
Um dia, nos jardins da Rede Bandeirantes, o saudoso Ricardo Boechat contou-me sobre a depressão que sofrera (torno público porque ele a tornou antes). Atolado em trabalho, louvado em prosa e verso, bem casado e com filhos lindos, cheio de perspectivas positivas e alvissareiras, foi tomado por um incontornável sentimento negativo e depressivo. Homem inteligente, jornalista versado nas tragédias do mundo e pouco inclinado ao melodrama, sentiu-se engolfado pela doença. Falou-me muito da luta e do tratamento. Abracei-o, emocionado. Afirmei que não saberia o que dizer diante do drama. Ele sorriu e comentou: “Não precisa dizer nada, basta não julgar”. Outro amigo, padre Fábio de Melo, tornou conhecido outro mal que o acometeu: síndrome do pânico. A doença psíquica pode ser combatida, o preconceito parece ser mais complicado. Aprendi muito com Solomon, Boechat e padre Fábio. Depressão não é escolha, preconceito é. Conhecimento pode ajudar a superar ambos. Bom domingo para todos nós. 

quinta-feira, 4 de abril de 2019

Homeschooling não é solução, é distração

Ana Maria Diniz

BLOGS
Ana Maria Diniz
A educação que vale a pena

Neste momento, com tantas coisas mais importantes para se fazer na Educação e tantas crises para se administrar, inclusive a do MEC, não faz sentido tratar o ensino domiciliar como prioridade

Nunca passou pela minha cabeça, como mãe, tirar meus quatro filhos da escola para ensiná-los eu mesma, em casa. Há vinte ou trinta anos atrás, quando eles eram crianças, o homeschooling era uma possibilidade bem mais remota e excêntrica do que é hoje e quase ninguém cogitava uma atitude dessas, até porque não se questionava tanto a escola. Mas acho que, mesmo se fosse agora, eu não tomaria essa decisão. Provavelmente eu não me sentiria com habilidade e competência, talvez nem tivesse paciência, para assumir essa responsabilidade a menos que não houvesse outra alternativa. Para mim, a escola não é só importante pelo conhecimento, mas também pela convivência com outras crianças. Matriculei meus filhos na escola bem cedo, aos 2 anos, porque sempre acreditei que o ambiente escolar é bem mais saudável para os pequenos do que deixá-los em casa sob a supervisão de um adulto.
Educar um filho é a tarefa mais importante na vida dos pais. No entanto, assumir a responsabilidade de ensiná-lo pessoalmente conteúdos e métodos de aprendizado nem sempre é a melhor ideia. Quando a figura do pai se mistura com a do educador e os ambientes escolar e familiar se fundem, o contraponto entre duas realidades distintas, fundamental para a construção da nossa personalidade, não acontece. Mesmo assim, hoje, olhando à minha volta, vejo amigos meus, inclusive alguns muito esclarecidos, querendo se aventurar nessa prática. E arrisco a dizer que a decepção com as escolas e seu modelo falido é o que mais os motiva a considerar a ideia.
Pensando sobre o assunto, respeito a decisão das famílias que aderiram ao ensino domiciliar e acho que a modalidade deveria ser legalizada no país. Mas, nesta semana em que o tema volta a ser discutido com força total no Congresso, quero deixar bem clara minha posição: isso, certamente, não vai resolver o problema da Educação brasileira e tratar do assunto, neste momento, com tantas coisas mais importantes para se fazer, como garantir que todo o brasileiro seja bem alfabetizado aos 7 anos, e tantas crises para se administrar, inclusive a do MEC, todo esse debate e alarido em torno do homeschooling é, no mínimo, uma grande distração. De qualquer forma, o homeschooling não precisa ser demonizado. Ele já acontece em 63 países, como Estados Unidos, França, Portugal e México. Não faz sentido continuarmos a tratar os cerca de 15 mil brasileiros que optaram por educar os filhos dentro de casa como se fossem criminosos ou mantê-los no limbo da ilegalidade. Apenas acho que a prática não deve ser incentivada, pois ela serve a uma minoria.
Em vez de fecharmos os olhos para a realidade, temos que entender melhor porque a prática de homeschooling, criada nos anos 70 na esteira da liberação dos costumes e adotada majoritariamente por famílias religiosas até os anos 2000, vem crescendo de forma vertiginosa no mundo inteiro – agora, mais recentemente, também entre famílias comuns, sem crenças ou motivações religiosas. Temos que nos perguntar: que fenômeno é este? A falência do modelo atual de escola é a única explicação para isso? Qual é o papel do fácil acesso à informação neste cenário? Graças à tecnologia, hoje quem adere ao método dispõe de muito mais meios e recursos. Apesar disso, são raríssimas as famílias que têm condições reais de ensinar e de dar o suporte adequado para seus filhos estudarem em casa e aprenderem de fato. Também são poucos os jovens que têm a disciplina e a determinação para estudar por conta própria e ser bem sucedido.
Por isso, na minha opinião, caso a prática seja liberada em nosso país, as crianças e jovens educados em casa devem participar de avaliações como Saeb, Prova Brasil e Enem para comprovar se eles estão realmente aprendendo fora da escola. Estamos em meio a uma mudança de era e, nesse cenário, novas possibilidades tendem a surgir e a se consolidar. O homeschooling é uma delas. Mas jamais será a solução em massa para resolver o problema da Educação brasileira, de agregar qualidade à garantia de aprendizado para todos.