domingo, 31 de dezembro de 2017

Por que o mundo levou 2 mil anos para descobrir o avanço de Arquimedes no estudo da Matemática

BBC
Um livro perdido poderia ter mudado a história mundial. Desaparecido há mais de mil anos, o exemplar contém um registro único das ideias de um dos maiores estudiosos de todos os tempos.
Tudo começou em Siracusa, na região da Sicília, na Magna Grécia (sul da península Itálica colonizada pelos gregos), no ano de 287 a.C.. Foi quando Arquimedes, um gênio que estava séculos à frente do seu tempo, nasceu.
"Não há outro matemático na Antiguidade, nem na história, que chegue perto de Arquimedes", disse à BBC Chris Rorres, professor emérito de Matemática da Universidade Drexel da Pensilvânia, nos Estados Unidos, quando o manuscrito foi recuperado.
Arquimedes é popularmente conhecido como o homem que gritou "Eureka!" na banheira.
Ele estava tentando resolver um mistério sobre a coroa de ouro do rei.
O monarca suspeitava que o ourives que fabricou a coroa tinha misturado prata, metal mais barato, ao ouro que ele tinha fornecido para confecção do objeto.
A coroa tinha o peso certo (equivalente à quantidade de ouro fornecida pelo rei), mas como a prata é mais leve do que o ouro, a questão era: será que a coroa tinha um volume maior do que se tivesse sido fabricada em ouro maciço?
Certa vez, ao entrar na banheira para tomar banho, Arquimedes percebeu que quanto mais seu corpo ficava submerso, mais água transbordava. A partir desta observação, ele concluiu que poderia estabelecer quão grande era a coroa do rei ao imergi-la em um recipiente com água e medir a quantidade de líquido que seria deslocado.
Dizem que ele ficou tão entusiasmado com a descoberta que saiu imediatamente do banho e correu nu pelas ruas de Siracusa gritando "Eureka", que em grego significa "descobri".

Inventor famoso

Não sabemos se os cidadãos da Sicília realmente viram Arquimedes nu, mas a verdade sobre a coroa do rei foi revelada: o ourives tinha sido desonesto e o matemático havia se mostrado um excelente detetive.
Durante sua vida, Arquimedes tornou-se famoso por suas invenções e temido por suas armas de guerra.
Foi também nomeado conselheiro militar pelo rei de Siracusa, que o confiou a defesa da cidade.
Mas é por meio da matemática que sua verdadeira genialidade aparece. Foi ele que considerou estimar um valor para π (Pi), vital para calcular a área de um círculo, um dos componentes básicos da ciência.
Ele fez isso colocando um círculo entre polígonos, já que seu perímetro pode ser calculado, pois seus lados são retos.
Ele começou inserindo um hexágono dentro do círculo e outro fora. Em seguida, foi adicionando mais e mais lados até chegar a 96.
A ideia era fazer com que os polígonos se aproximassem o máximo possível do perímetro do círculo, o que lhe daria os limites cada vez mais próximos entre os quais deveria estar π.
Polígonos entre círculos
Arquimedes usou polígonos de 96 lados para encontrar um valor aproximado para o número Pi
Ele calculou assim que o valor de π estava entre 310/71 (aproximadamente 3.1408) e 31/7 (cerca de 3.1429), uma estimativa que ainda é usada pelos engenheiros hoje - e é mais do que suficiente para todos os propósitos práticos.
Obcecado por matemática, o estudioso não enxergava nenhum problema como difícil demais.
Ele chegou a tentar, inclusive, calcular a quantidade de grãos de areia necessários para preencher todo o Universo.
A resposta: 10, seguido de 62 zeros.
Ilustração de um rombicuboctaedro, um dos sólidos de Arquimedes
Rombicuboctaedro, um dos sólidos descobertos por Arquimedes | Foto: Cortesia Cyp que POV-Ray

Os historiadores da época contam que Arquimedes ficava eufórico quando descobria formas matemáticas cada vez mais complexas.
4 triângulos e 4 hexágonos formam um tetraedro truncado ...
12 quadrados, 8 hexágonos, 6 octágonos - octaedro truncado ...
12 pentágonos, 30 quadrados e 20 triângulos, 60 vértices, 120 arestas, 62 faces: um rombicuboctaedro.
Tragicamente, Arquimedes ficou tão conhecido que até os romanos sabiam da sua existência e desejavam capturá-lo.

Quando finalmente conseguiram invadir a cidade de Siracusa, deram ordem para prendê-lo. Mas o soldado que o encontrou se distraiu e, sem notar a confusão ao seu redor, não recebeu as instruções corretas. Por isso, matou-o com a espada.

Uma reciclagem devastadora

A morte de Arquimedes, em 212 a.C., marcou o fim de uma era de ouro na matemática grega, que foi declinando gradualmente.
No entanto, seus manuscritos sobreviveram, sendo reproduzidos por escribas que transmitiram seus conhecimentos de geração para geração. No século 10, foi produzida uma cópia final de suas obras mais importantes.
Mas o interesse pela matemática havia se perdido, e o nome de Arquimedes foi esquecido.
Certo dia, no século 12, um monge ficou sem pergaminhos. A consequência disso foi desastrosa.
As páginas da cópia final da obra mais importante de Arquimedes foram reutilizadas para fazer um livro de orações.
Cada uma das folhas que formavam uma página dupla do manuscrito foram cortadas e dobradas para dar origem a novas páginas, que, após serem lavadas e raspadas, ficaram suficientemente claras para se escrever novamente sobre elas.
O manuscrito foi reciclado e transformado em um palimpsesto - um papiro ou pergaminho que "mais uma vez" (palin, em grego) foi "raspado" (em grego, psao) para apagar o que estava escrito e ser reutilizado.
Tornou-se, assim, um livro de orações do mosteiro de Mar Saba, no deserto da Judeia, no Oriente Médio.

O renascimento matemático

No século 15, o Renascimento chegou à Europa. A ciência avançou o suficiente para que os estudiosos compreendessem os argumentos matemáticos de Arquimedes.
No entanto, ninguém tinha noção que algumas de suas maiores ideias haviam se perdido.
Os matemáticos renascentistas tiveram que lidar com conceitos e problemas que Arquimedes havia resolvido 1,5 mil anos antes.
Mas centenas de anos se passaram até que o manuscrito do grego viesse à tona novamente. Ninguém sabe como, mas ele apareceu em uma biblioteca de Constantinopla, atual cidade turca de Istambul.
Em 1906, ao revisar o catálogo da biblioteca, Johan Ludvig Heiberg, especialista dinamarquês em cultura grega, se deparou com algo no documento que despertou sua curiosidade.
"Ele deve ter ficado atordoado ao ver o manuscrito. Ele sabia muito bem o quão valioso era o que ele estava lendo", afirmou à BBC William Noel, ex-curador do Museu de Arte Walters, nos EUA. Atualmente, ele é diretor do Instituto Schoenberg para Estudos de Manuscritos da Penn Libraries, na Filadélfia.
Como não podia retirar o manuscrito da biblioteca, Heiberg tirou fotos das páginas e, com base nelas, tentou reconstruir o trabalho de Arquimedes, uma tarefa incrivelmente árdua quando sua única aliada era uma lupa.
De qualquer forma, a descoberta de Heiberg revelou ideias que até então não eram conhecidas.
No livro, Arquimedes não só dava as respostas para seus cálculos, como tinha escrito seus pensamentos mais íntimos, revelando como tinha feito seu trabalho.

'O Método'

"Foi uma descoberta espetacular para a história da matemática. Se você é pintor, provavelmente tem interesse nas obras finalizadas dos grandes mestres da pintura. Mas, além disso, você quer saber as técnicas, os métodos, as tintas que eles usaram. Os matemáticos querem saber não apenas quais são seus teoremas, mas como se chegou até eles ", compara Rorres.
O Método, título dado à obra, mostrou que Arquimedes criou uma abordagem radical que nenhum matemático havia chegado perto de inventar.
Em sua mente, ele havia construído um conjunto de escalas completamente imaginárias para comparar os volumes de formas curvas - o que ele usou para tentar calcular o volume de uma esfera.
Como já se conhecia o volume de um cone e de um cilindro, ele tentava equilibrar a esfera e o cone de um lado com o cilindro no outro. Tudo isso mentalmente.
Arquimedes imaginou um número infinito de cortes e, usando uma matemática muito complexa, encontrou uma maneira de equilibrar os objetos nas escalas.
O resultado final: o volume de uma esfera é precisamente dois terços do volume do cilindro que encerra essa esfera.
O matemático considerava a descoberta tão importante que pediu que fosse inscrita em sua lápide.
Ao arquitetar volumes usando cortes infinitos, Arquimedes dava o primeiro passo em direção a um ramo vital da matemática, conhecido como cálculo, 1,8 mil anos antes de ser inventado.
O mundo moderno não poderia existir sem o cálculo - é essencial para cientistas e engenheiros, e a tecnologia do século 21 depende disso.

Outro desaparecimento

Em 1914, quando estava prestes a descobrir a verdadeira genialidade de Arquimedes, o plano de Heiberg de estudar o manuscrito em Constantinopla foi bruscamente interrompido.
Com o início da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Europa e o Oriente Médio foram tomados pelo caos, e o palimpsesto onde estavam os escritos do matemático se perdeu novamente.
Os acadêmicos tinham poucas esperanças de reaver o documento, mas, em 1971, Nigel Wilson, um especialista em Grécia antiga, ouviu falar de uma página de um manuscrito em uma biblioteca da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e foi investigar.
"Transcrevi algumas frases. Havia termos técnicos muito específicos. Pelo vocabulário, descobri rapidamente que se tratava de um ensaio de Arquimedes, e me dei conta que deveria ser uma folha do famoso palimpsesto", disse à BBC Wilson, professor de Estudos Clássicos da Universidade de Oxford.

Mas por que apenas uma página do palimpsesto de Arquimedes foi parar em Cambridge?
Uma pista era sua procedência: uma coleção de documentos que pertencia a um erudito chamado Constantine Tischendorf, um homem de poucos escrúpulos.
"Tischendorf viajou muito pelo Oriente Médio. Em Constantinopla, visitou a biblioteca e disse que havia apenas um manuscrito de seu interesse: um palimpsesto com um texto matemático. Não disse mais nada", contou Wilson.
"Não podemos deixar de supor que essa página foi roubada", acrescenta.
No início do século 20, Heiberg contava só com uma lupa para ler o manuscrito. Nos anos 1970, Nigel Wilson tinha a seu favor a tecnologia moderna.
"A maior parte da página era legível e, com a lâmpada ultravioleta, os cantos, que não podiam ser lidos, ficaram nítidos."
Após a 1ª Guerra Mundial, Paris e outras cidades europeias foram inundadas de obras de arte do Oriente Médio, mas ninguém tinha visto o documento de Arquimedes.
Em 1991, Felix de Marez Oyens começou a trabalhar para a casa de leilões Christie's e, em seu novo escritório, encontrou a carta de uma família francesa que dizia ter um palimpsesto.
Intrigado, De Marez Oyens foi examinar o livro. "De cara eu soube que deveria ser o manuscrito que Heiberg estudou pela primeira vez em 1906", disse à BBC De Marez Oyens.
Os proprietários contaram que, na década de 1920, um parente que era colecionador amador havia adquirido o manuscrito em Constantinopla. Agora eles queriam vendê-lo.

Mas qual é o preço de algo inestimável?

"Qualquer avaliação de algo assim é simplesmente uma suposição. Acho que eu disse a eles que valia entre US$ 550 mil e US$ 800 mil", afirmou De Marez Oyens.
O manuscrito foi vendido por muito mais. Um bilionário anônimo pagou US$ 2 milhões.
Em 1998, era chegada finalmente a hora de recuperar o conhecimento perdido por mais de dois milênios. Alguns meses após comprar o manuscrito, o novo dono entregou o documento ao Museu de Arte Walters, em Baltimore, no estado de Maryland, nos EUA.

Cientistas, restauradores e historiadores começaram a se debruçar sobre a obra.
Usando tecnologia de imagem multiespectral e uma técnica de raio-X que faz brilhar o ferro da tinta que foi raspada, eles descobriram que o documento continha não só sete tratados de Arquimedes, como também discursos de Hipérides, político e orador ateniense, e comentários sobre as categorias de Aristóteles do século 2 ou 3.
Entre os tratados do matemático grego, estava a única cópia sobrevivente do Stomachion de Arquimedes, no qual ele tenta descobrir de quantas maneiras é possível combinar 14 peças fixas para formar um quadrado perfeito.
A resposta é 17.152 combinações.
Stomachion significa dor de estômago, que é como se referiam aos enigmas na antiguidade.
Trata-se do primeiro trabalho a desenvolver a matemática das combinações, que é a base da probabilidade, algo que se acreditava ter surgido nos séculos 17 ou 18.

Até o infinito

Sem dúvida, a leitura de O Método deixou claro que Arquimedes deu um grande passo para a compreensão do infinito; mais que isso, usou o conceito como parte do argumento de um de seus teoremas.
Arquimedes estava mais próximo da ciência moderna do que se imaginava. Embora se soubesse que ele tinha dado alguns passos na direção do cálculo moderno, o palimpsesto mostrou que, de certa forma, o grego já havia chegado lá.
O que teria acontecido, então, se esse documento não tivesse sido perdido? Se os matemáticos do Renascimento tivessem tido acesso a ele?
"Isso teria mudado a matemática, é claro, mas devemos ter em mente que influenciaria todas as ciências. Então, basicamente, teria sido se a maré do conhecimento tivesse subido centenas de anos atrás", responde Rorres.

Escola pobre campeã do Enem motiva e atrai até estudantes da rede privada

PAULO SALDAÑA
MARLENE BERGAMO
ENVIADOS ESPECIAIS A SIMÃO DIAS (SE)

Lucivaldo Nascimento é o único estudante da sua turma de medicina da Universidade Federal de Sergipe que trabalha durante o curso.
Desdobra-se entre as atividades práticas da graduação, em Aracaju, e as aulas de biologia que ministra, desde 2006, na escola estadual Dr. Milton Dortas, em Simão Dias (a 100 km da capital).

A presença dele na universidade e na escola representa um capítulo especial para a cidade. Lá, em 2012, diante do descrédito da maioria dos estudantes em ingressar na universidade, Nascimento fez uma proposta aos alunos: "Vou me inscrever no curso mais concorrido do vestibular. Não vou só ensinar, vamos estudar juntos". Um grupo de 30 alunos topou o desafio.

Com aulas de reforço aos sábados, que o professor ofereceu voluntariamente, houve aprovações já naquele ano –dois passaram em medicina. O próprio professor também conseguiu e se forma médico no ano que vem.
"Muitos alunos moram em povoados na área rural, são de famílias muito pobres, e não tinham motivação para o vestibular", conta Nascimento, 43. "Aos poucos, a cabeça foi mudando e criou-se a motivação que estava perdida", completa, ao ressaltar a importância da Lei de Cotas, de 2012, para o processo.
Assim, a escola viveu uma transformação. No Enem 2016, obteve o melhor desempenho entre todas do país com perfil similar: unidades com alunos pobres e que concentram muitas matrículas.

Folha calculou as médias dos alunos no Enem 2016 por escola, levando em conta o nível socioeconômico das unidades. Pesquisas mostram forte relação entre esse perfil socioeconômico e o desempenho escolar dos alunos.
A escola de Sergipe tem características desafiadoras. São 1.200 alunos de ensino médio. Em 2016, havia 245 no 3º ano, e 216 fizeram o Enem.
A média da escola, de 499,75 pontos, corresponde a estudantes da manhã, tarde e noite. É superior à média das escolas estaduais do país, da rede estadual de Sergipe e de escolas do mesmo nível socioeconômico ("baixo").
Em 2017, 58 alunos conseguiram vaga na federal de Sergipe. No total, cerca de 150 egressos chegaram a faculdades públicas e particulares.

MUDANÇA

Os bons resultados no exame se repetem nos últimos três anos. A diretora, Daniela Silva, 31, explica que as primeiras aprovações foram um marco, "ao mostrar que era possível". Mas uma nova postura do trabalho pedagógico foi também essencial.

"A direção passou a ser mais rígida. As aulas são planejadas desde o início do ano para serem mais contextualizadas, voltadas para o Enem e para a vida", diz Daniela.

Os alunos contam com orientação psicológica, discutem-se os planos de vida e profissional e há aulas de reforço aos sábados. Projetos de música, dança e esportes também têm papel importante.
Os bons resultados têm atraído alunos da rede particular. Neste ano, 40 jovens migraram de duas escolas privadas para o Milton Dortas.


Filho de uma pedagoga, Tarcísio Renner, 16, fez essa mudança. "Minha mãe queria que eu ficasse na particular, mas eu insisti. As turmas lá eram menores, mas aqui eu sinto que tenho voz e o ensino é muito bom", diz ele, que quer cursar engenharia da computação e é vice-presidente do grêmio estudantil.


Simão Dias é um município pobre do interior de Sergipe. O Índice de Desenvolvimento Humano está abaixo da média do país e do Estado. O perfil da população se reflete na escola, que era a única de ensino médio da cidade até 2017, quando um novo prédio foi inaugurado.

Muitos alunos são filhos de agricultores que não terminaram a educação básica. No ano 2000, menos de 1% dos jovens de 18 a 24 anos estavam no ensino superior. Em 2010, o índice ainda era baixo, mas já passava dos 6%.

A baixa escolaridade das mães representa mais um desafio para o sucesso escolar. A mãe de Verônica Santos, 16, concluiu a 4ª série, e o pai, agricultor, é analfabeto.
Aluna do 3º ano, fez o último Enem. Não conferiu o gabarito, de nervoso, mas acredita que consegue uma vaga na federal em direito ou odontologia. "É uma oportunidade única estar aqui. Mas como a escola tem fama de ser boa, gera uma pressão."

O colega Paulo Henrique Souza, 18, também no 3º ano, quer engenharia civil. "O melhor aqui são os professores."

A escola atende jovens do centro da cidade e de 75 povoados rurais. Todos os dias, um ônibus escolar também faz o transporte de alunos que moram em assentamentos de reforma agrária, a cerca de 30 minutos de lá.

A aluna Ana Carolina dos Santos, 16, vive desde que nasceu no assentamento 8 de Outubro. Um pequeno e organizado vilarejo vinculado ao MST, cercado pelos lotes de plantio de milho e abóbora administrados pelos assentados desde 1998.
Na casa onde mora com a mãe, o padrasto e a irmã, a conversa sobre os planos da universidade é diária.

"Tento mostrar que a vida não é fácil. A gente só tem oportunidade se tiver estudo", diz a mãe, Maria Aparecida dos Santos, 38, que é faxineira e responsável pelo plantio do seu lote. Carolina quer medicina. "Quero me formar e ser uma grande médica pediatra. É meu sonho."

DESAFIOS

Mesmo com bons resultados, a escola enfrenta dificuldades comuns à rede pública. Somente após alunos ocuparem a escola em 2016, em protesto contra a reforma do ensino médio, a unidade recebeu reformas que esperava havia quatro anos (as salas ainda não têm ar-condicionado). Também há faltas temporárias de professores, como o de física no último semestre.

O mais grave problema é uma alta taxa de reprovação, sobretudo no 1º ano (de 23%). O que colabora para um índice preocupante no abandono escolar: 17% em toda etapa.
Daniela Silva, a diretora, diz ter ciência do desafio. "Muito do abandono é reflexo dos problemas sociais, mas temos nos empenhado para reduzir esses índices", diz. "Há um mês, ligamos para 200 pais".
Em 2018, a escola inicia o modelo de ensino integral, o que deve reduzir o número de alunos. O desafio para a gestão será manter neste modelo os alunos mais pobres, que em geral precisam trabalhar e têm dificuldade de ficar na escola em tempo integral.

sábado, 30 de dezembro de 2017

O monge 'mais letrado do mundo' que criou a base da computação há mais de 1,2 mil anos


Estatua de Alcuino
Alcuíno, criador de desafios que deram origem à análise combinatória, era considerado o homem mais sábio do mundo
A Idade Média, que começou com a queda do Império Romano, é frequentemente descrita como uma época de obscurantismo e declínio intelectual – os livros eram raros e a maioria das pessoas não sabia ler.
No entanto, esse período histórico foi muito mais vibrante intelectualmente do que se pode imaginar. Nele surgiu uma série de problemas de lógica para "afiar a mente dos jovens", incluindo o clássico desafio da balsa ensinado até hoje – sobre o homem que precisa cruzar um rio com um lobo, uma cabra e uma cesta de repolhos. Ele não pode deixar o lobo comer a cabra, nem a cabra comer o repolho, mas na balsa só cabem ele e mais um elemento.
O autor desse e de diversos outros enigmas foi o monge Alcuíno de York – em seu tempo conhecido como o "homem mais letrado do mundo".
Ele escreveu um livro só com esse tipo de problemas. Seus desafios consolidaram na Europa as bases para um ramo da matemática chamado análise combinatória – tipo de cálculo que hoje está por trás da programação de computadores e da criptografia moderna.

O colecionador

Livro escrito à mãoEmbora sua biblioteca não tenha sido preservada nos dias de hoje, a devoção de Alcuíno pelos livros ficou registrada em seus próprios escritos
Sua história de vida ajuda a desafiar o estereótipo sobre o período. Quando Alcuíno nasceu, por volta do ano 732, a Inglaterra era uma colcha de retalhos de pequenos reinos saxões e cristãos – um legado da ocupação romana região.
Alcuíno estudou na pequena escola que havia ao lado da catedral de York, e mais tarde se tornou diretor. Sob sua administração, o colégio se tornou um dos mais prestigiados da Europa.
Ele defendia o aprendizado de matemática e lógica pelo valor do conhecimento, não como forma de encontrar salvação religiosa, como era comum na época.
Alcuíno reunia livros escritos à mão em uma renomada biblioteca. Além de obras dos primeiros pensadores cristãos, ele conservava tinha fragmentos escritos por filósofos gregos e romanos.

Professor de Carlos Magno

Alcuino mostra um livro a Carlos Magno
Alcuíno foi chamado para ser professor de Carlos Magno
No século 8, os francos – que governavam uma região que hoje é da França – expandiram seu reino sob a liderança do rei Carlos Magno. O império carolíngio foi crescendo até incluir grande parte da Europa, com a ideia de expandir as fronteiras da cristandade.
Além de líder militar poderoso, Carlos Magno era um estudioso. Diferentemente de muitos outros governantes da época, sabia ler e o fazia com frequência – especialmente os livros de pensadores clássicos.
Em 780, ele criou uma corte de intelectuais e se propôs a chamar o melhor professor que existia: todos sabiam quem era.

Foi assim que Alcuíno saiu de York para a capital do império, Aachen (hoje na Alemanha), onde se tornou professor do imperador. A partir de então, ajudou a estabelecer escolas em muitas das catedrais do império até se tornar abade, cerca de 15 anos depois.
O monge foi o responsável por um ressurgimento intelectual tão significativo que por vezes o período é chamado de renascimento carolíngio.
Ainda que todos os governantes da época venerassem os livros mais por considerá-los bem valiosos do que pela sabedoria quem continham, a sua mera manutenção ajudou a preservar parte dos conhecimentos antigos e fomentar a crença de que valia a pena fazer perguntas sobre a natureza do mundo – e obter respostas sem a inclusão de Deus na equação.

As bases

Embora a ciência não fosse como a de hoje, o conhecimento desenvolvido e preservado na época – como a aritmética e a geometria – criou a plataforma intelectual que tornou possível o desenvolvimento da ciência no futuro.
Muitos historiadores consideram a vida de Alcuíno de York como um ponto de inflexão importante da história intelectual ocidental. Diferentemente dos livros complexos escritos pelos gregos, o trabalho de Alcuíno trazia elementos da vida das pessoas - a cabra, o rio – e incentivava os estudantes a pensarem por si mesmos.
A resposta para o desafio da balsa, aliás, é levar primeiro a cabra, voltar, pegar o lobo, levar para o outro lado e deixá-lo lá. Na volta, trazer a cabra para que ela não fique sozinha com o lobo, deixá-la do primeiro lado, pegar o repolho, levá-lo para o outro lado e voltar novamente para pegar a cabra.
Os enigmas podem ser resolvidos com tentativa e erro, mas, como explica à BBC a matemática Hannah Fry, "há uma maneira de ordenar claramente as possíveis soluções: a análise combinatória".
"Esse tipo de desafio é a gênese da ideia de análise combinatória: analisar todas as possibilidades e contá-las de forma ordenada, lógica e sistemática", diz a professora da University College London (UCL), em Londres.
"Se você está escolhendo um caminho, tem que analisar todas as rotas possíveis e escolher a mais rápida. Se você envia uma mensagem secreta, o que os criptografistas fazem é ordenar as diferentes possibilidades e encontrar a resposta. Na computação, muito dos experimentos e cálculos feitos pelos cientistas usam a análise combinatória", explica ela.
Segundo a cientista, o programa educativo de Alcuíno tem uma mensagem importante: além de útil, encontrar soluções para problemas de lógica pode ser divertido. Isto, em uma época em que a curiosidade era vista com receio, foi uma ideia revolucionária.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Decisões de Ano Novo

claudia costin
Cláudia Costin
É professora da FGV e professora-visitante de Harvard. Foi diretora de Educação do Bird, secretária de Educação do Rio e ministra da Administração.


Pouco depois do Natal, pessoas de diferentes origens tomam decisões para o ano que se inicia, normalmente incluindo a aquisição de hábitos saudáveis, como perda de peso, prática regular de exercícios ou interrupção de vícios. Vez por outra, contemplam aprender coisas novas, seja línguas estrangeiras ou educação financeira, ou iniciar novas etapas na escolaridade formal, como concluir o ensino fundamental ou médio ou frequentar uma pós-graduação.
Por trás das decisões, uma percepção importante: somos responsáveis por nossa própria aprendizagem, mesmo que caiba ao Estado oferecer educação, organizar ou regular o serviço, em suas diversas etapas. E isso deve ser ensinado a crianças e adolescentes desde o início da escolaridade, afinal, aprendemos ao longo de toda a vida.
Em 2015, a Assembleia-Geral da ONU aprovou, entre os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, um específico sobre educação que estabelece que os países buscarão "assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos".
Em outros termos, a educação é um direito e é papel do Estado garantir que, em nenhuma circunstância, um ser humano seja privado de sua fruição, mas o sujeito é protagonista de sua vida e, como tal, deve buscar meios de se desenvolver intelectualmente, de acordo com sua idade e interesses.
Mas como podem adultos continuar a aprender, especialmente os que já concluíram várias etapas da educação formal? Tomo aqui a liberdade de incluir relato em primeira pessoa, que eventualmente pode, com as devidas adaptações, ajudar a quem, neste período de festas, quer fazer projetos para 2018.
Em 2007, decidi ler aquelas obras de que todos falam, mas poucos leram, ou seja, livros que marcaram a humanidade e se tornaram clássicos da literatura. Consultei várias listas, fiz a minha própria e comecei a leitura, nem sempre fácil, mas, no mais das vezes, extremamente prazerosa, sem outra motivação que não a oportunidade de conhecer o que gerações passadas quiseram nos transmitir como prazer estético ou reflexões sobre a condição humana.
Além disso, defino, a cada ano, uma programação de estudos, seja na minha área, políticas educacionais, ou em temas que me intrigam, como neurociência, filosofia ou história. Não procuro ser metódica demais: a aprendizagem demanda um pouco de bagunça e de observação apaixonada da natureza, de fenômenos sociais e políticos, ou de eventos que marcam nosso tempo.
Mas a cada ano, olhando para decisões de anos anteriores, gosto mais da sensação de estar no painel de controle de minha própria aprendizagem. Vale a pena tentar!

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Leandro Karnal • Fim de Ano: Momento Para Pensar a Vida

Trecho da palestra "A Vida que Vale a Pena ser Vivida em Tempos Líquidos"


Parceria entre escola, família e sociedade desafia, mas é a chave para o desenvolvimento.

Anna Helena Altenfelder
ANNA HELENA ALTENFELDER Anna Helena Altenfelder é pedagoga, mestre e doutora em psicologia da educação e preside o conselho do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária). Já foi formadora de professores, autora de materiais de orientação, gerente de projetos e docente universitária


"A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade". É o que o diz o artigo 205 da Constituição Federal (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm), na abertura do belíssimo capítulo que trata da educação em nosso país. Além de nos lembrar que a educação é um direito social de todos os brasileiros, o texto afirma que ela deve ser promovida em parceria entre o Estado – materializado, entre outras, na instituição escolar – a família e a sociedade, com o objetivo de promover o "pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho", ainda conforme o texto de nossa lei maior. 

Trata-se de uma concepção de educação que abarca, mas vai muito além da instrução ou do domínio de conhecimentos científicos e técnicas em áreas específicas do conhecimento. Ela indica também a importância de se trabalhar habilidades e competências para o desenvolvimento integral. Ou seja, não basta ao estudante aprender português, matemática e ciências, é preciso conhecer a história e constituição social do país, sua diversidade regional, étnica e religiosa, entender sua organização política, seus direitos e deveres. Enfim, tudo o que é necessário para sua atuação na esfera pública como cidadão pleno, capaz de reconhecer e manejar saberes, práticas sociais e culturais de seu país. 


Diante desses objetivos da educação, fica a pergunta: o que caberia à escola, à família e à sociedade na garantia desse direito? De que forma essas instituições devem se complementar? As parcerias premiadas recentemente na 12ª edição do Prêmio Itaú-Unicef (https://educacaoeparticipacao.org.br/premio-itau-unicef/) – iniciativa da Fundação Itaú Social e do UNICEF com coordenação técnica do CENPEC – Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária – trazem alguns exemplos de como a sociedade pode colaborar com uma educação pública de qualidade. 

Em Major Sales (RN), o projeto "Circulando a Cultura na Escola", parceria entre a Associação Comunitária Sociocultural de Major Sales e a Escola Municipal Antônio José da Rocha, aposta na cultura popular como estratégia educativa. As diversas atividades desenvolvidas têm o intuito de promover e difundir as manifestações culturais tradicionais da comunidade. 

Já em Bragança (PA), 150 adolescentes são beneficiados pela parceria entre a Fundação Nossa Senhora do Rosário e a Escola Estadual de Ensino Fundamental do Rocha no projeto "Aluno Repórter – A Imprensa na Escola". Entre as ações desenvolvidas, profissionais de rádio e televisão ministram palestras e oficinas audiovisuais para todos os alunos participantes. 

Outra das parcerias premiadas, o "Projeto Olho Vivo", é fruto de parceria entre a Associação Experimental de Mídia Comunitária – Bem TV e a Escola Estadual Guilherme Briggs. Ela ajudou a formar crianças e adolescentes de Niterói (RJ) em comunicação e, assim, ampliar suas perspectivas para o futuro. A quarta iniciativa premiada, o projeto "Cultura, Esporte e Cidadania", de Criciúma (SC), realiza atividades que visam promover o exercício do protagonismo, da liberdade e da democracia com os alunos da Escola Estadual Padre Paulo Petruzzellis. 

Além dos exemplos citados, as mais de 1.650 iniciativas participantes desta edição do prêmio mostram como as organizações da sociedade civil podem atuar sem substituir o papel do Estado, mas numa perspectiva complementar à da escola. 

Família e escola 

A parceria entre família e escola, por sua vez, parece ser um debate ainda mais importante de se retomar diante de algumas iniciativas a que assistimos neste ano. A quem caberia, por exemplo, a discussão sobre temas como sexualidade, religião e política: à família ou a escola? 

Ainda que pareça fazer sentido que a chamada "educação moral" se dê no âmbito familiar, do ponto de vista pedagógico, é preciso lembrar que a diversidade de formas de vivenciar questões comportamentais constitutiva de nossa sociedade está presente no cotidiano de todos e também nas escolas. Ela se faz ainda mais presente nas escolas públicas, em que convivem filhos de pais com uma infinidade de arranjos familiares e, portanto, com vivências e formações diversas. 

Ao contrário do que apregoam os defensores do movimento Escola Sem Partido, com base no medo e na desinformação, a escola não pretende substituir o papel da família e nem ditar qual o padrão comportamental de seus alunos. Mas é também seu papel constitucional abordar essa realidade social e estimular o respeito e a tolerância para formar um cidadão ético. É disso que se trata, por exemplo, quando se pretende que a escola aborde questões de gênero e sexualidade: apresentar a diversidade e promover o respeito às diferenças como valores humanos.  

É claro que a família pode e deve participar dessa discussão e existem mecanismo legais para isso: os conselhos municipais e estaduais de educação, da merenda e do Fundeb; os conselhos de escola; as associações de pais e mestres; os projetos políticos-pedagógicos participativos, entre outros. Todos ganham quando família e escola conseguem estabelecer um diálogo efetivo, quando os pais conhecem os currículos, quando professores e responsáveis atuam juntos para acompanhar e apoiar o desenvolvimento de todos os estudantes em suas dimensões cognitivas, físicas, afetivas, intelectuais, éticas e sociais. 

Não faltam exemplos de como o diálogo tende a ser mais efetivo do que a desconfiança ou a tentativa de judicialização. São justamente as escolas que se abriram à participação dos pais e da comunidade as que mais têm se destacado como exemplo de qualidade nas redes públicas de ensino do país. Sei que a construção de parcerias entre escolas, famílias e sociedade desafia, mas é também a chave para o desenvolvimento integral de crianças, adolescentes e jovens. Por isso, gostaria de deixar aqui o meu apelo para que, em 2018, o diálogo possa a ser a tônica da relação entre diretores, professores, alunos, pais e a sociedade como um todo. 


segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Alfabetização requer mais do que só método, diz ganhadora do Jabuti

Belo Horizonte, MG, BRASIL, 17-11-2017, 11:00h. Retrato da educadora Magda Soares, 85, em sua casa em Belo Horizonte. Ela é uma das maiores especialistas em alfabetização no país.(Luis Evo/Folhapress COTIDIANO) *** EXCLUSIVO FOLHA *** ORG XMIT: Luis Evo
A educadora Magda Soares, 85, uma das maiores especialistas em alfabetização no país


PAULO SALDAÑA
ENVIADO ESPECIAL A BELO HORIZONTE

Pouco antes de ter a aposentadoria compulsória na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), o que ocorre aos 70 anos, a professora Magda Soares adiantou sua saída. Depois de décadas na docência e pesquisa, decidiu voltar às escolas públicas (onde começou a carreira) de forma voluntária.
Autoridade em pesquisas sobre alfabetização, ela atuou então em uma creche e, desde 2007, passou a coordenar um projeto de alfabetização no município mineiro de Lagoa Santa (a 35 km da capital), que veio a se tornar uma referência no país, com resultados superiores à preocupante média brasileira.
Aos 85 anos, sua última obra "Alfabetização –A Questão dos Métodos" (Ed. Contexto) recebeu o prêmio Jabuti de 2017 na categoria educação e, no início de dezembro, foi escolhido como o livro de não ficção do ano.
"A ideia é que esse livro alertasse quem forma o professor de que alfabetização é mais do que métodos", disse. Além de defender a articulação entre teorias e métodos para que se entenda o processo de alfabetização –e dessa forma, realizá-lo– Soares ressalta a importância da reformulação dos cursos de formação de professores e da Base Nacional Curricular (que define o que se deve aprender).
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Folha - No livro, a senhora reforça a importância de pensar menos no método de alfabetizar, mas sim em alfabetizar com método. Por quê?
Magda Soares - A discussão na alfabetização sempre ficou na questão dos métodos. Qual usar? Qual é melhor? Fiquei 40 anos na universidade trabalhando com formação de professores e fazendo pesquisas, e a pergunta que me fazia era a seguinte: todo mundo dá o método, mas o método tem que estar com a base em teorias, em fundamentos. Mas cada método tem uma coisa certa aqui, mas nunca é tudo. Outro faz sentido pra outra coisa, mas não pra outra.
A alfabetização é uma questão complexa, que tem muitas facetas. E a tendência dos métodos é olhar um lado só, só uma faceta, e o objeto se perde. Nos anos 1980, fiz uma pesquisa longa para levantar toda a produção científica. Ninguém discutia o que é alfabetização. E sempre houve na área uma tendência, um partidarismo, de ser a favor a determinado método.
Quando falamos em uma criança alfabetizada, estamos falando do que exatamente?
Tudo se discute sem se pensar o que, afinal, é isso. Eu vejo dois lados importantes. Primeiro é o ponto de vista da criança, do desenvolvimento cognitivo. E por outro, um desenvolvimento cognitivo para quê? Para se apropriar de um objeto linguístico que é muito complexo. Fiz um capítulo sobre isso motivada sobretudo pela tendência de as pessoas quererem importar sucessos exteriores. Ah, porque os americanos já resolveram que o método fônico é melhor. Mas olha a ortografia do inglês e olha a ortografia do português. No inglês, há uma relação muito complexa. Tem uma letra que representa vários sons, um conjunto de letras que representa vários sons. E vários sons que são representados pelas mesmas letras. É uma língua muito opaca. Na outra ponta, tem o finlandês. Cada letra um fonema, cada fonema uma letra. Aí dizem: "A gente tem que fazer igual na Finlândia", "as crianças se alfabetizam em seis meses". Está bom, mas a ortografia deles ajuda isso.
Essas línguas favorecem métodos mais homogêneos?
Sim. Porque você vai ensinar uma criança brasileira a se alfabetizar e tem uma mesma letra que pode representar diferentes sons. Ou diferentes sons serem representados pela mesma letra. O que não acontece no finlandês, que é uma ortografia transparente, registra exatamente os sons da língua. Não adianta buscar exemplos do finlandês, porque está alfabetizando num outro objeto. Então vamos trazer a experiência dos Estados Unidos, que tem uma produção de pesquisas enorme? Mas são ortografias completamente diferentes. A do português brasileiro é próxima da transparência.
O foco da discussão foi muito direcionado em o que fazer?
Sempre se considerou em ensinar a ler e escrever, se pensou nisso como método. No Brasil, a alfabetização sempre foi um problema da pedagogia. A partir de um certo momento os linguistas começaram a se interessar e isso no Brasil começou nos anos 1970, outro dia historicamente.

Só a partir disso começa ter uma produção significativa de linguistas olhando para "o que a criança faz com a língua". E, ao mesmo tempo, a psicologia cognitiva se voltou para o contrário: "o que a língua escrita faz com a criança". Dois campos que foram trabalhando isolados, e a pedagogia como um terceiro, dizendo: é preciso falar o que é pra fazer.
E o pedagogo acaba isolado sabendo que vai pra sala de aula logo após a formatura.
A gente forma o professor, põe na sala e fala: "Alfabetiza essas crianças". Então ele diz: "Me dá uma cartilha, livro, uma receita". Acho que está mais evidente que só se pode discutir alfabetização conhecendo como o processo ocorre. É o processo cognitivo de crianças em determinadas fase de desenvolvimento para se apropriar de um objeto linguístico, de características próprias. Além das pesquisas, [o projeto de]Lagoa Santa me ajudou muito. Porque eu pude ver a coisa acontecendo, e tentar fazer com que as professoras não ficassem atrás do "que é que eu faço", mas atrás do "por quê".
A que a senhora atribui o sucesso em Lagoa Santa?
É um projeto baseado em teorias e de trabalho com as professoras. Nada foi artificial, é o pessoal da rede. Para atingir a rede toda, escolhi uma professora da sala de aula de cada escola. A primeira providência foi a base [curricular]. Falei: vamos pensar juntas quais habilidades que as crianças têm de adquirir pra aprenderem. Fiz uma versão, que chamamos de nossas metas, ano por ano. Discuti e me corrigiram muito.
A gente até leva em consideração avaliações externas, mas o que nos interessa são as metas que temos, e o que a gente está fazendo pra chegar lá. E não tem material pronto.
As pessoas nunca se perguntaram como se alfabetiza com qualidade. Entra numa tradição de repetir, porque só estão atrás de métodos. E o fundamental é alfabetizar com métodos, e isso significa que eu entenda o que estou fazendo. E aí muda enormemente quando se vê uma criança com dificuldade.
Como a senhora vê a oposição de pesquisadores que receiam uma escolarização adiantada na educação infantil?
Dizem que é forçar a criança, que nessa fase ela tem de ter campos de experiências. Bom, toda criança se desenvolve com experiências. Mas na educação, o que caracteriza as experiências é que elas são dirigidas para determinadas habilidades, conhecimentos que deve se adquirir. Mas não querem saber para onde a experiência vai, e acham que a alfabetização começa em uma determinada hora.
As crianças nascem hoje no meio da escrita. Elas estão vendo escrita por todo lado, veem os pais, têm interesse. Toda criança pergunta "como é a letra?" "O que está escrito?".
Como vê a discussão sobre considerar o processo de alfabetização até o 2º ano ou até 3º ano do fundamental?
É uma discussão sem foco. É um processo que dura e vai acompanhando o desenvolvimento da criança. E não tem um momento que você fala: aqui eu posso começar a alfabetizar. Porque já começou há muito tempo. Ou então: aqui está alfabetizada. Ela se apropriou do sistema alfabético de escrita, mas ainda não é capaz de ler com fluência ou escrever um pequeno texto. Mas no 3º ano, ela já é capaz. E no 4º ano, está melhor. É contínuo.
Mas sobre o conjunto de conhecimentos que se divide até 2º ou 3º ano, para que a criança esteja autônoma para aprender outras coisas, inclusive se aprofundar na própria alfabetização. Quando faz sentido ter uma régua, avaliar o que é esperado?
Só se pode fazer isso com uma decisão política, não pedagógica. Com os professores que temos, com a formação, condições, as escolas, se a gente conseguir que no 2º ano as crianças tenham se apropriado do sistema alfabético, então vamos marcar o segundo ano. É política, aleatória. mas é importante não deixar solto, sem critério.
Ao mesmo tempo que as faculdades não dão atenção à alfabetização, quem vai para esse segmento são em geral professores iniciantes. É possível ser otimista quando o contexto é tão fragilizado?
Sem mudar a formação do professor, ao menos para educação infantil e séries iniciais, não vamos avançar. Uma esperança é que a base force os cursos a começar a preparar os professores para atender o currículo. As redes vão poder orientar melhor, e os livros vão ter que se organizar pela base.
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Raio X

Formação
Graduada em letras, doutora e livre-docente (1962) em educação pela UFMG
Carreira
Professora emérita da UFMG. Chefia o Núcleo de Alfabetização e Letramento de Lagoa Santa (MG). Com "Alfabetização - A Questão dos Métodos" (Ed. Contexto), levou o Jabuti de livro do ano