quarta-feira, 23 de agosto de 2017

DECIFRA-NOS OU TE DEVORAMOS


IMATURO, ENGAJADO, INGÊNUO, IDEALISTA. AS EMPRESAS PENAM PARA ENTENDER OS JOVENS, SEUS FUTUROS FUNCIONÁRIOS E CONSUMIDORES. UMA PESQUISA INÉDITA TENTA AJUDAR. E O PSICANALISTA PEDRO DE SANTI COMENTA


NAYARA FRAGA

Eu amo a juventude como tal. O que eu abomino é o jovem idiota”, disse o escritor Nelson Rodrigues em uma entrevista, em 1969. Um conservador político de raiz, Nelson se referia à insensatez de rapazes e moças que, na ebulição dos anos 60, escreviam nas paredes que era “proibido proibir” mas incensavam Lenin e Fidel. “Jovens, envelheçam”, ele tripudiava também, com a voz pastosa e debochada. O olhar rabugento do dramaturgo é compreensível. Chegar à vida adulta sempre leva à conclusão de que antes, “na minha época”, tudo fazia mais sentido: as manifestações políticas eram mais inteligentes, as relações afetivas eram mais profundas, o consumo era menos desenfreado. Sensações falsas, sabemos. A novidade é que essas sensações, nos nossos tempos acelerados de redes sociais e de streaming até do lanchinho feito na padaria, causam ainda mais desorientação, em especial nas empresas. Ávidos para entender e seduzir esse novo consumidor/trabalhador, os executivos se perguntam: quem exatamente é o jovem atual?

Para tentar responder a essa questão, a agência de publicidade Talent Marcel fez uma pesquisa com mais de 500 jovens brasileiros, ouviu 21 especialistas no tema, de psicólogos a cientistas políticos, e produziu o documentário Mind the Gap – Desmistificando Nosso Olhar Sobre o Jovem. A resposta é que não há resposta. No ponto de vista da agência, o jovem continua o mesmo, um conservador, e não há por que se preocupar tanto em entender esse ser estranho. “O revolucionário, o rebelde que quer mudar o mundo, que é a imagem que vem à cabeça quando a gente pensa em jovem, representa só 1% do total”, diz a diretora de planejamento da Talent, Camila Massari. Deus e Jesus Cristo, por exemplo, ocupam o primeiro e o segundo lugar, respectivamente, no top 10 de ídolos da moçada. Che Guevara? Mandela? Gandhi? Luther King? Esqueça. O recomendável, defende o documentário, seria que as empresas se concentrassem mais na forma (como e por quais canais o jovem se expressa hoje) do que no conteúdo (quem ele é).

Para os especialistas ouvidos no estudo, entretanto, o cenário não é tão simples. Segundo o psicanalista Pedro de Santi, cujos conselhos são frequentemente requisitados nas empresas que querem entender o mercado, achar que o jovem continua o mesmo de sempre é um erro. “Ele nunca é sempre novo e nunca é igual a ele mesmo”, diz. Quem é essa figura, afinal? Professor, líder de Humanidades e Direito da ESPM e autor de três livros sobre modernidade e consumo, nesta entrevista Santi ajuda a clarear o entendimento sobre a juventude. Uma dica antecipada ao adulto: você nunca vai entender completamente.


ÉPOCA NEGÓCIOS Os ídolos dos jovens brasileiros, segundo a pesquisa, são Deus, Jesus Cristo e Rihanna. Onde estão Gandhi, Mandela e Luther King?

Pedro de Santi Vivemos hoje em um mundo que funciona como uma máquina de produzir cínicos. Perdemos as referências simbólicas de autoridade. Todo mundo desautoriza todo mundo, um denuncia o outro e não há como saber o que é verdade ou não. Qual é o jornal que veicula informação consistente? Qual é o político correto? É difícil para todo mundo entender o que acontece agora. Para os jovens, então, que estão em um momento de formação, parece ainda mais complicado. A impressão é a de que tudo está nivelado por baixo. Compreensível, pois, que a reação a esse quadro seja conservadora ou vá na direção do célebre. O Ignácio de Loyola Brandão diz, no livro O Anônimo Célebre, que uma pessoa é famosa porque ela é famosa, assim como o livro se torna best-seller porque vende muito. É uma coisa circular e sem lastro. Para os jovens que responderam à pesquisa, de um lado, a religião aparece como lastro. Do outro, vem a celebridade, o reconhecimento social. No meio, o vazio: a falta de gente consistente que funcione como referência.

NEGÓCIOS Onde está o jovem revolucionário que habita o nosso imaginário?

Santi Todo mundo guarda na lembrança aquele adolescente que nasceu durante a Segunda Guerra Mundial. Era o jovem otimista que, nos anos 60, acreditava que a poesia ia mudar o mundo, que enfrentou exércitos e se posicionou contra regimes autoritários. Só que isso não bate muito com os anos 90 e 2000. As pesquisas mostram que o jovem de períodos recentes é conservador e tem dentro de si muito mais um sentimento de tédio e falta de tesão do que uma vontade de transformar o mundo. Um fator que contribui para isso é o acesso fácil às coisas: consumo, experiências, vida afetiva e sexual. Isso enfraquece o desejo. O jovem fica entediado.

A MAIOR DIFICULDADE DESSA GERAÇÃO MULTITELA NÃO É GOSTAR DE UM PROJETO, MAS RENUNCIAR AOS DEMAIS. O EXCESSO DE POSSIBILIDADES AFOGA

NEGÓCIOS O documentário feito a partir da pesquisa cita um patrão que se espanta com o trainee que não quer ser ele no futuro. Isso não significa que há um jovem mais idealista no ambiente de trabalho?

Santi Isso é ser eternamente adolescente. E adolescente é o jovem em um momento importante de negar o adulto, negar a autoridade. É aquele pensamento: “Eu não quero ser você. Você é um hipócrita. Eu sei que você não gosta do que faz”. Dizer não sistematicamente para o pai e para o patrão é uma etapa necessária mas insuficiente para se tornar adulto. Você começa dizendo não na tentativa de ser livre e de descobrir qual é a sua. Esse é o mesmo raciocínio do adolescente. Ok, estamos falando aqui de jovens adultos, mas eles estão retardados no processo de amadurecimento. Um sinal disso é que têm saído cada vez mais tarde de casa. Por quê? Cada casa é um condomínio, com academia, restaurante e roupa lavada. Ele vai largar isso? Claro que não. Assim, o dinheiro dele fica só para comprar ingresso do show do Paul McCartney. Ainda que haja essa “economia”, no entanto, está demorando cada vez mais para o jovem obter o padrão de vida que recebe dos pais. Então ele vai ficando...

NEGÓCIOS Muitos se movimentam hoje na direção do empreendedorismo, para criarem suas startup. Não seria um sinal de busca pela liberdade?

Santi É fato que tem surgido agora um jovem com mais vontade de empreender, e isso é importante. Mas precisamos perceber que há um lado negativo nesse desejo: ele não quer ter patrão. Isso é negativo, porque é uma ilusão. O jovem acha que não ter patrão é ser livre. Ele não sabe que patrão é o sujeito menos livre do planeta. Patrão não tem fim de semana, não tem noite, não tem salário garantido. Mas na cabeça do jovem é assim: “Em vez de receber ordens, eu vou dar ordens”. Ele quer ser cacique.


Jovens (Foto: )
ATRASO “O jovem atual acha que ser livre é não ter patrão”, diz o psicanalista Pedro de Santi. “Pura ilusão”

NEGÓCIOS Isso porque ele busca poder também?

Santi Porque há infantilidade mesmo. Lembra quando a gente tinha 18 anos e achava que quando ganhasse dinheiro ia ser só para comprar roupa, ir para a balada e viajar? A gente não sabia que ia pagar IPTU, IPVA, escola das crianças, asilo da vovó. Essa é a noção infantil e romântica da liberdade: imaginar que não haverá obrigações e deveres na condição de chefe. Ingenuidade. O mais próximo  que chegamos da liberdade é o “se vira, jovem, que as contas agora quem paga é você”.

NEGÓCIOS Diz o estudo que, patrão ou não, o jovem quer ser respeitado, enquanto a geração anterior tinha uma relação com o trabalho que se baseava no medo. Não é uma evolução?

Santi É o que o Pondé [o filósofo Luiz Felipe Pondé, também ouvido na pesquisa] diz: essa história de trabalhar com propósito é para quem é rico; para quem depende do trabalho, não tem essa, não. A gente vive décadas de patrão. Direitos trabalhistas conquistados no século 20, no mundo inteiro, não só no Brasil, estão regredindo. Então, todo mundo tem medo de perder o emprego. O jovem de classe média alta absorveu nas aulas da faculdade a ideia de que o bom é trabalhar com propósito: “Ah, eu quero trabalhar só para alguém cujos princípios batem com os meus”. Ok. Mas só pode se dar ao luxo da escolha um grupo bem restrito de jovens. E é esse indivíduo que chega ao trabalho e diz: “Eu estou aqui há um mês e não sou CEO ainda? Como assim, não me promoveram? Meu salário vai ser só isso mesmo?”.

NEGÓCIOS Por que ele se comporta dessa maneira?

Santi Porque os pais mimam, querem que o filho seja feliz. Só que a função dos pais não é fazer o filho feliz. É preparar o filho para viver sem eles. No entanto, o filho é paparicado com consumo, experiências, recursos. Se está a ponto de ser reprovado na escola, faz prova para entrar em outra e, de repente, consegue passar de ano, porque a escola tem medo de perder o cliente. Quando vira universitário, a faculdade faz o mesmo, pois também tem medo de perder o cliente. Assim, ninguém faz o trabalho de educador: nem o pai, nem a escola, nem a faculdade. O pai não quer perder o amor do filho e as escolas não querem perder o cliente. Isso significa que esse jovem chega aos 21 anos sem ter tomado “carcada” de ninguém. Trata-se, aliás, de um grande drama para as faculdades, que começam a receber o seguinte retorno das empresas que contratam seus estudantes para estágio ou trainee: “Escuta, que tipo de gente vocês estão educando aí? Bando de mimados”. O jovem entra no emprego, desaparece e nem avisa que não vai retornar. Volta para casa, mancando, e diz: “Papai, carcaram eu, disseram que fiz tudo errado”. Aí o pai pergunta: “Quanto você ganha mesmo?”. Como o filho recebe R$ 1,5 mil por mês, o mesmo valor da conta do almoço da família num restaurante fino de São Paulo, ele diz: “Fica em casa que eu te dou esse dinheiro, filho”.  

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Fonte: pesquisa \'mind the gap\'/talent marcel, com 500 jovens no Brasil entre 15 e 24 anos

NEGÓCIOS Como as empresas devem olhar para esse jovem?

Santi No caso do jovem funcionário, a empresa, sabendo dessa imaturidade, precisa criar condições progressivas de exposição à realidade. Não dá certo continuar mimando e também não dá certo fazer o sujeito cair na real de um dia para o outro. Jogar às feras de uma vez pode traumatizar. Os chefes podem introduzir responsabilidades progressivas no dia a dia, para trabalhar o amadurecimento e a autonomia do jovem. É algo que a família e a escola deveriam ter feito. Mas hoje o empregador acaba precisando assumir essa tarefa também. No caso do jovem na condição de consumidor, a empresa percebe que ele se torna consumidor cada vez mais cedo. Aliás, a sociedade incentiva que a criança tenha direito de escolha bem precocemente. Aos 4 anos, geralmente já exposta aos tais influenciadores digitais mirins – youtubers de 8 anos que tiram produtos das caixas e promovem suas qualidades –, ela já escolhe a roupa que quer usar. Não é preciso julgar negativamente. Para as empresas que vendem produtos, isso é bom. A reflexão deve ser de quem educa. É preciso haver uma educação para o consumo desde muito cedo.

NEGÓCIOS As empresas buscam empregados jovens mais maduros?

Santi Sim. Mais maduros, menos técnicos e com maior capacidade de aguentar o tranco. Falo da capacidade de levar bronca, levantar e aprender. É a capacidade de viver no mundo adulto. É isso que faz falta e tem sido valorizado. É a maturidade pessoal, emocional. Nesse sentido, tem havido um renascimento da valorização das matérias de humanidades. Não falo de saber as teorias de Max Weber e Pierre Bourdieu, grandes sociólogos. Falo de aprender a aprender.

AS EMPRESAS BUSCAM JOVENS FUNCIONÁRIOS MAIS MADUROS, MENOS TÉCNICOS E COM MAIOR CAPACIDADE DE AGUENTAR O TRANCO: DE CAIR, LEVANTAR E APRENDER"


NEGÓCIOS O documentário sugere que o jovem está meio perdido hoje em razão do fácil acesso a tudo. Como resolver isso?

Santi Esse é o grande drama da geração que cresce com iPad na mão. É a tal geração multitela, que alguns caem na tentação de associar com DDA (distúrbio de déficit de atenção). Não é nada disso. Trata-se de alguém que nasceu com várias telas à sua frente, do celular, do tablet, do computador. Qual é a grande dificuldade desse cara? Renunciar. O problema não é gostar de um projeto. É renunciar aos outros. O excesso de possibilidades o afoga. Realizar algo no tempo necessário requer muita capacidade de renúncia aos outros prazeres que o chamam. Por que eu vou levar um namoro a longo termo se eu tenho o Tinder e o Happn no meu telefone? Como o [filósofo e também entrevistado no estudo] Clóvis de Barros diz, é como se precisássemos de um “programa redutor de alternativas existenciais” para diminuir a angústia. Qual é a resposta do mercado para isso? Reduzir as opções de escolha. Veja quantos modelos de telefone tem a Apple. É só o iPhone.

NEGÓCIOS Ter opções de escolha demais faz, dessa maneira, o jovem ser menos livre do que ele acha que é?

Santi Para mim, que sou psicanalista, não somos livres em momento nenhum. Alguém que estuda ciências humanas não acredita quase nada em liberdade. Livre talvez se considerem aqueles que não pensam a respeito. Quem adora falar de liberdade é quem menos acredita nela: a publicidade. Mercadologia à parte, eu acho que nunca o jovem teve tanto acesso a tanta coisa. Isso não é exatamente liberdade. São portas de angústia. Mas é claro que é preferível ter mais acesso do que pouco acesso. A gente que aprenda a gerenciar essa massa de informações e opções que vem, sobretudo, via novas tecnologias.

Jovens (Foto: )
BRASIL Ranking de ídolos dos jovens do país começa com Deus (1º), Jesus (2º), Não tenho ídolo (3º) e Rihanna (4º)

NEGÓCIOS Também graças à tecnologia há jovens se reunindo em torno de causas, fazendo muito ativismo. Um bom sinal?

Santi Esses jovens compõem um grupo importante que se constituiu de 2000 para cá e que dá cara ao que chamamos de ativismo do século 21. São os coletivos de gênero, etnia etc. Eles têm voz importantíssima. Mas tudo é ambivalente. Os coletivos que dão voz a causas relacionadas a minorias são uma reação de individualismo também. Eles também são conservadores, portanto. É uma armadilha. É comum ouvir que homens não devem defender causas feministas porque isso tiraria o protagonismo das mulheres: “Só mulheres podem defender mulheres”. Leve isso ao extremo e vira cada um por si. O politicamente correto levado a ferro e fogo cria um universo de autistas. Ouvimos por aí: “Ah, a minha liberdade acaba quando começa a do outro”. Não. A gente é misturado. Eu não começo aqui e você começa lá. Estamos conversando, somos uma comunidade linguística. Meu espaço não acaba quando o seu começa. Estamos no mesmo espaço. A gente se esbarra, se toca, é tangente.

NEGÓCIOS Você é otimista ou pessimista em relação aos jovens?

Santi Cada geração acha que a seguinte é louca. Seu pai achou isso de você e você vai achar isso dos seus filhos. Você vai olhar para os seus valores, não vai reconhecê-los na geração seguinte e vai dizer: “São insensatos. No meu tempo era melhor”. A gente sempre tende a ter um olhar decadentista quando fala do presente. Analisamos os jovens sob o prisma da negatividade. Eu acho que eu sou ambivalente nessa análise. Vejo uma superficialidade na juventude, mas acredito que há potenciais que eu ainda não reconheço simplesmente porque sou velho. Ou seja, sou otimista porque não sou só pessimista. É que cada geração se constitui num certo ambiente simbólico. O que eu entendia como namoro quando eu era jovem não é o que a minha filha entende como namoro hoje. Quando eu, com os meus valores, olho para um código novo, ele me parece totalmente sem sentido. Parece que o mundo está acabando, que está tudo louco.

NEGÓCIOS A juventude atual é louca?

Santi Não. Eu é que me acho burro. Eu me acho ignorante. Eu não tenho o código. O problema é meu, não da geração. E eu não transfiro a minha ignorância para o jovem. O que um analista tem de fazer é igualzinho ao que o mercado tem de fazer: aprender a ouvir. Assim, não se acionam preconceitos. Isso vale para uma clínica de psicoterapia, para uma pesquisa de mercado ou para uma empresa. Não dá para achar que jovem é tudo igual e que o jovem de hoje é o mesmo de ontem. Quem fizer isso vai dançar. Adolescente nunca é sempre novo e nunca é sempre igual a ele mesmo. Haverá sempre uma tensão entre identidade e diferença. A sugestão é: suspenda o que você pensa que sabe e ouça de novo.

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