quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Os investidores passaram a perguntar: como seria a cara dessas grandes empresas de educação num mundo com menos Fies?

Na véspera da reunião da Kroton com investidores, e-mail anônimo começou causar burburinho que poderia atrapalhar, e muito, a vida da empresa

Por Ana Paula Ragazzi

São Paulo — O dia 24 de outubro tinha tudo para ser tranquilo para Rodrigo Galindo, presidente do grupo de ensino superior Kroton. Maior empresa de educação do mundo, a Kroton faria naquele dia seu encontro anual com investidores. Normalmente, essa é a hora em que Galindo brilha — a Kroton habituou-se a dar boas notícias a seus acionistas. Suas ações subiram 215% nos últimos quatro anos. Mas alguém estava querendo bagunçar o dia. Na véspera do “Kroton Day”, um e-mail anônimo escrito em inglês começou a circular entre os acionistas da empresa.
O missivista escondia seu nome porque fazia acusações à Kroton, apontando supostas irregularidades no uso dos recursos do Fies, programa de financiamento estudantil do governo federal. O próprio autor admitia seu interesse na confusão: estava apostando na queda das ações da companhia. O e-mail foi desqualificado pelos executivos da Kroton, mas gerou um burburinho que poderia atrapalhar, e muito, a vida da empresa — e Galindo e sua equipe passaram as semanas seguintes se dedicando a responder ao e-mail.
Poucos programas do governo federal levaram tanta pancada de um ano para cá quanto o Fies. Desenhado para financiar o estudo de quem não tem recursos, o Fies passou a ser criticado por ser insustentável do ponto de vista financeiro. O governo paga a faculdade e, depois de formados, os alunos acertam as contas com o próprio governo. De 2009 a 2014, o Fies custou 50 bilhões de reais. Segundo um relatório divulgado pelo Tribunal de Contas da União em novembro, o governo não tinha controle sobre o Fies, que está sendo re-formulado. As redes de ensino superior, naturalmente, cresceram como nunca. De 2010 a 2015, o lucro da Estácio acumulou crescimento de 565%; da Ser Educacional, 483%; e da Anima, 819%. E o lucro da Kroton, impulsionado também pela série de aquisições que protagonizou, cresceu 22 130%.
A grande exposição dessas companhias ao programa de financiamento sempre foi vista como um fator de risco. Mas, com resultados estelares, as ações das empresas subiam sem parar. Tudo mudou em 2015, quando o dinheiro do governo acabou e o MEC encolheu o Fies. Os investidores passaram a perguntar: como seria a cara dessas grandes empresas de educação num mundo com menos Fies?
O escrutínio foi maior no caso da Kroton, que não só é a maior como também a mais rentável do setor — e a com as ações mais negociadas na bolsa. A Kroton soube, melhor do que as concorrentes, aproveitar o Fies. Em 2014, o percentual de alunos do Fies chegou a 63% de sua base, enquanto nas concorrentes estava na faixa de 40%. Durante alguns meses em 2015 e 2016, os dados das mensalidades cobradas pelas universidades ficaram públicos, e investidores mergulharam nos números para entender um pouco melhor o modelo de cada escola. Quem analisou as planilhas observou que os preços médios cobrados pela Kroton eram maiores do que os da concorrência em 12 de 18 cursos.
Em Cuiabá, cursos de educação física custavam 2 000 reais mensais, quatro vezes mais do que a média da concorrência. Um relatório escrito pelo analista Tiago Ring, da gestora Kapitalo, especulou que a Kroton conseguia subir, acima da média, os preços das mensalidades em turmas formadas basicamente por alunos do Fies — como são menos sensíveis a preço, esses estudantes continuavam a cursar a faculdade. O relatório, que faz um panorama do Fies e critica o modelo de negócios “Fies-dependente” das redes, foi escrito para consumo interno, mas acabou circulando nos computadores de outros investidores.
O tal e-mail veio em seguida e repetia os argumentos com uma retórica beligerante liberada pelo anonimato — acusava as grandes do setor de cobrar preços diferentes de alunos do Fies em relação aos demais, pedia uma auditoria no programa e sugeria que os investidores vendessem as ações da Kroton. Como o e-mail era fortemente baseado nos dados do relatório do analista da Kapitalo, surgiu a suspeita de que poderia ser a própria gestora espalhando os boatos para lucrar com uma eventual queda das ações. Ring, o autor do relatório original, deixou a Kapitalo logo depois do “e-mail-gate”. A gestora e o analista não deram entrevista.

Força-tarefa

Galindo havia montado, em agosto, uma força-tarefa interna de 30 pessoas para analisar, uma por uma, as mensalidades de suas 16 000 turmas e verificar se havia, nos preços de partida, diferenças na cobrança entre os alunos do Fies e os demais. Até então a Kroton só fazia esse levantamento por amostragem. Depois de 3 000 horas de trabalho, a equipe concluiu que, na média, os alunos do Fies pagam 40% mais — mas, segundo a empresa, existiriam boas razões para isso. De acordo com os dados levantados pela Kroton, os alunos que têm o financiamento pagam 303 reais a mais por mês, e dois terços dessa diferença são explicados pelo fato de a maioria deles (53%) escolher os cursos mais caros, como engenharia. Como a evasão de alunos do Fies equivale a um terço da média dos demais alunos, o tempo de permanência dos alunos do Fies é maior, o que ajuda a aumentar seu tíquete médio. Além disso, algumas bolsas oferecidas a alunos “privados” não podem ser concedidas a alunos do Fies — o que pode tornar suas mensalidades mais baratas do que as cobradas de alunos financiados pelo governo.
Depois do “Kroton Day”, Galindo decidiu mostrar ao mercado o levantamento. Com um calhamaço de 561 páginas com todos os valores cobrados de cada um dos alunos de ensino presencial da companhia, ele preparou  uma apresentação para mostrar que opera dentro das regras — e que eventuais discrepâncias, como o curso de educação física por 2 000 reais em Cuiabá, devem-se a peculiaridades locais, como a demanda aquecida. No dia 21 de novembro, convidou analistas de bancos e corretoras para apresentar os dados. No dia seguinte, esses analistas soltaram relatórios elogiando a transparência da empresa.
De fora da primeira reunião, os gestores de recursos, que compram as ações para as próprias carteiras, pediram mais informações. Foi marcada uma nova reunião para mais de 100 investidores. Segundo relatos dos presentes, a dúvida de alguns investidores girava em torno do efeito do PEP, programa próprio de financiamento da Kroton, no cálculo da média de preços. Como o “aluno-PEP” não tem nenhum desconto, esses gestores ponderaram que a inclusão ou não deles no cálculo do preço médio de quem não tem Fies poderia influenciar na diferença das mensalidades. A EXAME, a empresa informou que o impacto do PEP nos preços do primeiro semestre de 2016 foi marginal, inferior a 2% do preço de tabela.
Desde o “Kroton Day”, as ações da empresa caíram 17%. As perdas são superiores às do Ibovespa (-3,8%) e às da concorrente Ser (-7%) — os papéis da rival Anima subiram 0,7%. Isso mostra que, apesar do sucesso da campanha “mata-boato”, pairam dúvidas sobre a estratégia da companhia. A empresa conseguirá manter as margens atuais quando a base do antigo Fies tiver se formado? Quanto a mensalidade média baixará nesse cenário? Uma das grandes incógnitas é o efeito que o PEP terá sobre os resultados. Hoje, os alunos do PEP representam 7,8% da base total da Kroton, mas o número sobe para 22% se forem considerados na conta apenas os não beneficiados pelo Fies.
Qual será a taxa de inadimplência? Ninguém sabe, já que o programa é recente, mas a própria Kroton faz uma provisão de 50% para cobrir eventuais calotes. Outra dúvida é o futuro da fusão com a Estácio, segunda maior rede do país — o negócio ainda será julgado pelo Cade, órgão antitruste brasileiro, e essa indefinição atrapalha. Finalmente, espera-se para o início deste ano o anúncio das regras do novo Fies, que está sendo redesenhado pelo MEC. Apesar das dúvidas, o mercado segue apostando na Kroton. Dos 15 bancos e corretoras que cobrem a empresa, 11 recomendam a compra de suas ações.

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