quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Notas do Enem em SP mostram forte 'peso do CEP' no desempenho do aluno

"Para que sejamos de fato um país republicano em que todos tenham chances iguais por meio dos serviços públicos, a educação pública tem que ser tão boa a ponto de superar o efeito família e as vantagens que os filhos das famílias ricas já têm"

Por Ligia Guimarães

 Os dados divulgados ontem pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (Inep) mostram que o maior determinante no desempenho de um aluno no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) pode ser o seu CEP. Análise da média das notas em redação e matemática apenas na cidade de São Paulo mostra um padrão claro: as dez maiores médias estão em escolas privadas e de nível socioeconômico muito alto, das regiões mais centrais: Jardins, Campo Belo, Vila Madalena. Já as dez médias mais baixas são todas de escolas públicas da periferia. Apenas uma privada, na região do Imirim, integra a lista das piores em redação. 

A análise do Valor considera apenas escolas com índice de permanência superior a 80%, ou seja: aquelas cuja maioria dos alunos cursou os três anos do ensino médio na instituição. A amostra paulistana, além disso, considera escolas de variados tamanhos e números de alunos; privadas ou públicas, (sendo municipal, estadual ou federal); e de diferentes perfis socioeconômicos. "Sabendo o CEP do aluno e da escola eu sei muito sobre a nota dele no Enem. 

A correlação é muito alta", diz o professor Chico Soares, ex­ presidente do Inep e atual presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, considerado um dos maiores especialistas em avaliação educacional do país. O retrato paulistano é antigo e se repete em todo o Brasil. "Somos uma sociedade muito desigual, e isso se reflete na educação. Você não pode analisar a educação sem explicitar essa desigualdade", diz Soares, crítico do modelo de comparação entre escolas em ranking. 

Foi na gestão de Soares que o Inep criou filtros para evitar distorções nas notas do Enem por escola; como o índice sócio econômico dos alunos da escola e o índice de permanência, que busca neutralizar o efeito de escolas que mantêm a prática de "importar" alunos com boas notas ou criam turmas "fictícias" para inflar posições nos rankings das melhores escolas. 

O modelo de negócio de muitas escolas que lideram os rankings divulgados anualmente, diz Soares, prevê busca pela matrícula de alunos com boas notas. "Elas [as escolas] vão empurrando para fora quem não se sai bem. Você coloca o aluno no colégio, e se ele não se sair bem eles te chamam para conversar: seu filho não se enquadra no nosso projeto pedagógico", afirma. Há seleção também em públicas federais, por exemplo, que têm exames rígidos para aceitar alunos. "São escolas que atendem muito bem a seus alunos. Mas quando as escolas que selecionam ocupam o topo do ranking, não posso dizer que é mérito delas.

" Antônio Augusto Gomes Batista, coordenador de pesquisas do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), concorda com a análise de Soares. "Existe uma espécie de segregação escolar, que é uma coisa que a gente estuda muito lá no Cenpec", afirma Batista, que cita o chamado efeito de território sobre o aluno, ou a sobreposição de desigualdades nas grandes cidades: dificuldade no acesso à saúde, segurança, transporte.

 "Quanto mais longe se mora, há mais concentração de pessoas mais pobres. Muitas vezes a escola é quase a única presença do Estado", diz Batista. "A escola tem muita dificuldade em fazer o seu trabalho porque acaba tendo que resolver uma série de problemas que vêm de fora da sala de aula", diz. O retrato de São Paulo, diz Batista, não é diferente do que ocorre no resto do país.

 "Em todas as grandes cidades do país isso ocorre, com algumas especificidades", diz. No Rio, por exemplo, o mapa seria menos espalhado em regiões, já que a favela e asfalto convivem proximamente. "Mas as favelas viraram uma espécie de gueto, um território quase que autônomo, sem a presença do Estado." Um ponto importante no combate a essa desvantagem de oportunidades para alunos da periferia, destaca o pesquisador, seria a criação de políticas públicas de apoio financeiro e estrutural para que os melhores professores da rede de ensino atuem nas escolas de áreas mais vulneráveis da cidade. 

"Ninguém quer ir para a periferia de São Paulo, para um bairro ainda em formação, com ocupações", diz Batista, que cita que os professores, na medida em que vão progredindo na carreira, candidatam ­se a concursos de remoção para áreas mais centrais, mais seguras e menos pobres.

"Os melhores professores vão saindo. Seria preciso um incentivo, salário, valorização, apoio", afirma Batista, que reconhece a dura rotina de um professor da periferia. "Não é simples trabalhar nessas escolas, principalmente se elas têm diretores que não são bons gestores". 

Daniel Cara, da Campanha Nacional Pela Educação, destaca o grande peso que a escolaridade dos pais têm no desempenho do aluno. "Muitas vezes o efeito família é tão superior ao efeito escola, que mesmo uma escola privada não tão boa acaba gerando resultado positivo só pela família", diz Cara, que cita o exemplo do desenvolvimento do vocabulário da criança, mais amplo quando os pais têm mais escolaridade. 

"Para que sejamos de fato um país republicano em que todos tenham chances iguais por meio dos serviços públicos, a educação pública tem que ser tão boa a ponto de superar o efeito família e as vantagens que os filhos das famílias ricas já têm", afirma Cara.

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