sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

O intelectual das massas



Por Marília de Camargo Cesar

Se você é um dos responsáveis pelas mais de 1,4 milhão de curtidas que o professor Leandro Karnal tem no Facebook (no seu perfil oficial e nas duas comunidades de admiradores e fãs), aqui vai uma dica: ele pode ser encontrado todos os dias, por volta das 4h30 da manhã, na Academia Gaviões, no bairro de Perdizes, em São Paulo, fazendo exercícios. Disciplinado, ele acorda sempre às 4h, toma um expresso, uma dose de Whey Protein (suplemento alimentar), come uma banana e segue para a ginástica. 

Por esses dias, a corrida na esteira e o treino com seu "personal" estão mais intensos. Com 1,82m de altura e 95 kg, ele engordou após uma temporada de três semanas em Paris. "Preciso voltar aos 90 kg", diz. Na cidade francesa, descansou, visitou museus e deu aulas a um grupo de interessados por história da colonização americana e outros temas de sua especialidade. 

Aos 54 anos, solteiro e sem filhos, Karnal é um dos professores de história mais requisitados do Brasil atualmente. Seu livro mais recente, "Felicidade ou Morte" (ed. Papirus 7 Mares), feito a partir de diálogos com o filósofo Clóvis de Barros Filho, está há semanas na lista dos mais vendidos. Outro candidato a best­seller com Karnal vai reunir conversas sobre fé com o padre "pop star" Fábio de Melo e está previsto para ser publicado neste ano pela editora Planeta. 

As aulas que ministra de história sobre a América colonial na graduação e de partes da história da cultura na pós graduação da Unicamp são intercaladas por gravações e palestras pelo Brasil (foram 200 em 2016) sobre temas variados, de ética e sociedade de consumo a empreendedorismo. O curso que fará neste semestre na Casa do Saber, no Rio, sobre democracia e ética, está com ingressos esgotados. Por questões de segurança, ele prefere não mencionar valores. 

Nos últimos dois anos, enquanto o país ia se afundando na crise política e econômica, o professor ascendeu para a celebridade. Ganhou coluna no jornal "O Estado de S. Paulo", na rádio BandNews FM, um lugar na bancada do "Jornal da Cultura", foi entrevistado duas vezes no programa "Roda Viva", por Jô Soares, Marília Gabriela, jornais, revistas etc. "Faltava você", ele brinca. 

Este "À Mesa com o Valor" é uma experiência quase "dionisíaca", para ficar no mesmo registro da fala de Karnal, pontuada por referências históricas, ilustrações sobre tendências culturais e analogias. As perguntas podem ser simples. As respostas, jamais. Karnal ensina o tempo todo ­ e o faz sem ser cansativo ou pedante. 

Suas "aulas" têm timing e sempre um pouco de sarcasmo. Quando fala sobre gastronomia, por exemplo, diz que os brigadeiros podem ter uma origem "tragicômica". O brigadeiro Eduardo Gomes (1896­1981), sobrevivente da Revolta dos 18 do Forte, em 1922 ­ que deu início ao tenentismo ­, fora atingido por uma bala na virilha. "A farda dele pode ser vista no Forte de Copacabana, com um buraco aqui", diz, apontando para a região. No fim do Estado Novo, em 1945, quando se candidatou nas eleições presidenciais, senhoras do comitê de campanha de Gomes faziam docinhos de chocolate para vender. Eles foram chamados de "brigadeiro". 

"Era a única sobremesa brasileira sem ovos, uma homenagem ao herói, que perdera os testículos na batalha", diz. A origem do doce é contestada por outros historiadores, como Leila Mezan Algranti (também da Unicamp), para quem o brigadeiro é anterior ao episódio. "Mas foi o brigadeiro Eduardo Gomes quem o difundiu."


Karnal e o maître Charlô Whately trocam impressões sobre hotéis e restaurantes estrelados que conhecem em Paris

O maître do Bistrô Charlô, no bairro dos Jardins, em São Paulo, chega para anotar os pedidos, e o professor, devido aos excessos cometidos em Paris, escolhe o robalo grelhado com purê de batata doce e espinafre. A repórter escolhe o tornedor de filé mignon com molho de mostarda Dijon e batatas assadas. Para acompanhar, água e suco de abacaxi. 

Karnal considera a overdose de programas de gastronomia na televisão e o espaço que a comida ocupa hoje na cultura como partes de um processo natural de conhecimento ­ a cozinha também é um dado da globalização. "Meus alunos mais jovens precisam ser lembrados que há 30 anos não havia mamão papaia no mercado, nem kiwi. Eu vi surgirem o estrogonofe, a raclete, a batata palha. Venho de uma família de classe média interiorana. O abacaxi espetado com presuntinhos, o coquetel de camarão, toda a cafonália da década de 60 para 70. As pessoas achavam elegante servir o vinho branco da garrafa azul. Hoje, servimos vinhos mais secos." 

Karnal é gaúcho de São Leopoldo, município a 36 km de Porto Alegre. Filho de um advogado, "um homem erudito" que dava aulas de latim, e de uma mãe que se dedicava à família "profissionalmente", é o terceiro de quatro irmãos e neto de um "criador de porcos e plantador de trigo". Estudou em colégio jesuíta num tempo em que cultivou a fé católica, mas a perdeu na juventude. Atualmente, Karnal se declara ateu. 

Formado em história pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, foi a São Paulo aos 24 anos para fazer doutorado em história social na Universidade de São Paulo. Sem dinheiro na época, aprendeu a cozinhar e tomou gosto pelo ofício. Chegou a fazer em casa um mil folhas com frutas do bosque, um prazer que a agenda não mais lhe permite. 

"Hoje é comum você ver no restaurante por quilo o kani­kama ­ seja lá o que venha a ser kani­kama", diz. "Como a frase do [político prussiano Otto von] Bismarck [1815­1898]: salsichas e leis, é melhor que você não saiba como são feitas." Para Karnal, afirmar que há um exagero de programas de televisão e reportagens sobre gastronomia é um julgamento. "Se há programas, há mercado, se há mercado, há interesse das pessoas." Ele conta que o primeiro grande livro sobre gastronomia popular é "Fisiologia do Gosto", lançado em 1825 por Jean Anthelme Brillat­Savarin (1755­1826), autor de frases como "Diz­me o que comes e eu te direi quem és" ou "A descoberta de uma nova receita faz mais pela felicidade do gênero humano do que a descoberta de uma estrela". A obra se insere num momento em que a cozinha dos nobres franceses perdera seus patrões, porque eles haviam sido decapitados na Revolução Francesa (1789­ 1799). Em consequência disso, os cozinheiros passaram a abrir restaurantes em Paris, alguns dos quais existem até hoje. 

"Comer imitando a nobreza passa a ser um gesto de 'nobilitação'. A nobreza nunca fez curso de etiqueta, a nobreza aprende vendo. É a burguesia que precisa imitar a nobreza. Etiqueta é um fato burguês. E o resultado é que esses lugares em que você restaura as forças ­ de onde vem a palavra 'restaurante' ­ começam a ser também um elemento de acesso social." 

Outro símbolo disso é mostrado no filme "A Festa de Babette" (1987), em que uma chef do século XIX foge devido a repressão da Comuna de Paris e busca introduzir num vilarejo de religiosos na Dinamarca um senso de "estetização da comida". "Quando aquelas pessoas experimentam suas codornas, quando elas têm acesso à sua sopa de tartaruga ­ coisa que nós brasileiros não podemos, em função do Ibama (precisamos pegar tartarugas estrangeiras), a comida vai se transformando num elemento de sociabilidade." 

Karnal não vê a paixão gastronômica num sentido negativo. "Alguém pode lembrar que o problema no Brasil ainda é garantir a comida para todos. Mas não vejo problema em estetizar a experiência. Seria como dizer: 'Se há analfabetos no Brasil, então não devemos ler 'Eneida'."

Charlô Whately, o dono do restaurante, chega para cumprimentar Karnal: "Tudo bem com você? Eu adoro tudo o que você fala! Ontem mesmo você falou sobre ética, não é?". 

"Outro dia uma aluna minha falou sobre você", responde Karnal. "Eu estava em Paris e ela me disse que já havia alugado um apartamento seu na cidade." Charlô conta que tem dois apartamentos em Paris, que costuma alugar. Eles passam a conversar sobre a cidade e trocam impressões sobre hotéis e restaurantes estrelados (e os mais discretos). Karnal menciona o Epicure, de Eric Frechon (três estrelas Michelin); Charlô diz que prefere o mais discreto Brasserie; Karnal conta que comeu ostras num lugar recomendado porque era mês com "erre", e Charlô fala sobre a tradição francesa de só comer ostras nos meses com "erre" ­ setembro, outubro, dezembro etc., ou seja, somente no inverno local. "Isso vem ainda dos tempos em que não havia refrigeradores." 

Karnal diz acreditar que a culinária não deve ser só uma experiência intelectual de descoberta, mas uma "experiência dionisíaca", de prazer. "Não aguento mais espumas", diz, já um tanto cansado das desconstruções da chamada gastronomia molecular. "Até em Portugal pedi minha sobremesa favorita, um pudim feito com ovos, amêndoas e uma tonelada de açúcar, e o pudim foi desconstruído, todos os elementos vieram separados." 

O dono do bistrô se retira, educadamente, e os pratos são servidos. Do lado de fora, a chuva fina vira quase uma tormenta e o calor intolerável dos últimos dias dá lugar a um agradável cenário de outono, em pleno verão. 

A superexposição não elevou demais a temperatura de sua vaidade? "A vaidade é universal, não é à toa que o orgulho é o primeiro pecado capital. Todos somos vaidosos, a diferença é como lidamos com isso", diz. ­ 

E como o senhor administra sua imagem? Tem alguém que o aconselhe, um consultor, alguém que puxe o freio? ­ 

Eu sou muito crítico de mim mesmo. Tento administrar isso oferecendo uma gama muito ampla de temas para discussão. Mas estamos expostos a um mundo em que tudo o que você fizer vai atrair detratores e admiradores. O "hater" é alguém que o admira com vetor contrário. Tenho dezenas de pessoas que me escrevem assim: 'Passei a noite vendo seus vídeos, eu te odeio'. ­ 

Isso seria, no fundo, o pecado capital da inveja?

Karnal diz que a "inveja é um procedimento" e que o psicanalista francês Jacques Lacan (1901­1981) tem uma reflexão em sua tese de doutorado sobre pensamento psicótico, na qual cita o exemplo de uma empregada que atacou uma famosa cantora francesa. Para Lacan, o alvo do ódio é o "eu" idealizado do agressor, o qual ele não consegue encarar. 

Segundo Karnal, o grave problema das mídias sociais é que as pessoas têm opinião sem ter dados, fontes, argumentos. Têm posição sem ter formação. O fato de termos acesso a todo tipo de informação pela internet faz supor que sabemos tudo. "Diluímos a autoridade do outro", afirma o professor. "Um leitor me diz: 'Li o seu texto e acho que você está errado'. Ok, então cite as fontes, os documentos." 

Karnal viu no YouTube um grande número de palestras afirmando que a terra é plana. Isso o fez lembrar de uma peça do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898­ 1956) em que Galileu (1564­1642) convida um cardeal para ver os satélites e o movimento dos planetas pela luneta, e o sacerdote responde: "Isso é uma ilusão demoníaca". 

"Brecht traduz essa questão contemporânea: tudo é opinião, tudo é questão de 'doxa' [do grego, opinião], tudo é subjetivo e individual. E se eu penso assim, é meu direito. A ideia de liberdade política e de liberdade de expressão não é mais acompanhada de autoridade. No fundo, nós, chamados intelectuais, sofremos a perda de um espaço relativo no mundo. Antes, se você falava sobre qualquer coisa, as pessoas o ouviam com mais reverência. Isso é o que temos que enfrentar no mundo contemporâneo, a perda da autoridade." 

Mesmo se colocando entre os intelectuais que estão perdendo espaço na sociedade, Karnal se considera essencialmente um professor. Não um produtor de novas ideias, mas um homem apaixonado pelo conhecimento e que serve como uma ponte entre a produção de ideias e as pessoas. 


"Não vejo nenhum demérito dizer que sou um professor e não um intelectual. Há poucas ideias que eu tenha produzido, e ao dizer isso não vai nenhuma dor, não vai nenhum 'Ai, que triste', pelo contrário", afirma Karnal. "É uma grande alegria ter lido toda a obra do [filósofo francês Michel de] Montaigne [1533­1592] no original, tê­la estudado noite após noite, e poder produzir um 'Café Filosófico' [programa na TV Cultura] em que trato do 'Discurso da Servidão Voluntária', do Étienne de La Boétie [1530­ 1563], amigo do Montaigne. É uma alegria ter lido toda a obra do Shakespeare [1564­ 1616] no original. Eu não produzirei o que o [crítico literário americano] Harold Bloom produziu sobre Shakespeare, mas tenho certeza de que exatamente porque sou essa ponte, posso entender a sutileza do pensamento dele e traduzi ­lo para as pessoas." 

Alguns críticos, no entanto, o tratam como um "vulgarizador de ideias". "Tomo isso como um elogio. A função do professor é tornar o conhecimento atrativo." Como atrair jovens hiperconectados ou multifocados para a leitura, como inocular neles o amor pelos livros? "Os jovens estão muito mais dispersos, por força ainda da formação técnica, mas, creia ­me, eles continuam muito inteligentes e muito interessados." O método de Karnal é sugerir partes de obras essenciais. "Leiam o capítulo 18 de 'O Príncipe', de Maquiavel [filósofo italiano, 1469­1527], onde ele sintetiza a sua obra; leiam o ensaio 31 do livro 1 dos 'Ensaios de Montaigne', sobre os canibais, no qual ele introduz o relativismo antropológico; se não quiserem ler todo Machado de Assis [1839­1908], leiam um conto, ao menos, 'A Igreja do Diabo', 'A Cartomante', 'Missa do Galo', leiam 'O Alienista', e a partir dessa porta você vai entrar num jardim fabuloso." 

Ao oferecer ao jovem pérolas de cultura, Karnal diz acreditar contribuir para fisgá­lo para o universo fascinante do conhecimento. "Tenho essa função quase missionária, de fazer com que as pessoas que leem pouco, de forma esparsa e não focada, descubram que o conhecimento transforma a vida, porque transformou a minha. E eu posso usar isso como argumento ­ conhecer transformou minha vida."

Charlô, que almoça na mesa ao lado, avisa que está ouvindo tudo e volta a participar da conversa. Entre uma e outra história em que compara as crianças francesas às brasileiras ("as brasileiras são as únicas que comem à la carte" ­ cada uma quer uma coisa diferente), ele pergunta se queremos sobremesa. Karnal recusa, mas volta atrás quando o dono do restaurante oferece encharcada, um doce português feito com gemas de ovos, coco e muito açúcar. 

Com a chuva diminuindo, a conversa vai se encaminhando para o fim. Temas como a ascensão do populismo de direita na Europa e a eleição de Donald Trump nos EUA chegam à mesa. "Os americanos desconfiam mais do Estado, sempre. Aquilo que disse [o ex­presidente] Ronald Reagan [1911­2004] em sua posse [em 1981] é algo inconcebível na boca de qualquer governante brasileiro. Ele disse: 'O Estado não é a solução do problema, o Estado é o problema'." 

Para Karnal, estudioso das religiões, a ética protestante pesou, sim, na eleição de Trump, um conservadorismo que não é só do "redneck", mas já se manifestou antes. "Em 1969, quando concorreu, Nixon era um homem pouco carismático, que já havia perdido a eleição para Kennedy, mas se candidata, já que os democratas estavam desgastados em função do Vietnã. Ele vence com a promessa de tirar o país da guerra", diz. "Nixon não cumpre a promessa, a guerra chega ao apogeu, e ele se candidata novamente, já com denúncias de desvio de verba e acusações de atos ilegais. A imprensa aposta no candidato democrata. Nixon vence. A partir de então usa­se muito a expressão 'maioria silenciosa'." 

"Quando você vê 50 mil pessoas reunidas na avenida Paulista, pense o seguinte: há 11, 9 milhões de pessoas que ficaram em casa. Um milhão pede Diretas Já ­ 11 milhões ficaram em casa. Essa maioria silenciosa geralmente é desprezada." 


Karnal diz que a ética protestante pesou na eleição de Trump, mostrando a força da 'maioria silenciosa' e o conservadorismo

Karnal diz que, para essa maioria, Trump encarna o macho alfa, o milionário que anda com mulheres lindas e é um típico "vencedor" americano. A imprensa traduziu, segundo o professor, apenas o sentimento dos cidadãos mais educados e refinados, que olham para Trump como um arrivista, um idiota, um ogro. "Exatamente por ser ogro, ele venceu. O que você vê como defeito, vira uma virtude." O professor conta que os franceses chamam isso de "mans faire" ­ a esfera dos homens. Foi tema de um recente artigo do jornal francês "Le Monde", que fala da vitória do macho alfa sobre o homem sensível, o bom marido, que exalta a inteligência da mulher. 

As mulheres ganharam poder e avançaram, enquanto os homens ficaram acuados, a identidade enevoada ­ essas sombras do masculino, diz Karnal, também podem estar entre as razões inconscientes para a eleição do "ogro" porque, de todos os grupos perdidos na revolução sexual, os homens são, de longe, os mais perdidos.

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