quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Metas para educação correm risco de fracassar

Por Ligia Guimarães

Documento mais importante da educação brasileira e norteador das políticas educacionais dos Estados, municípios e União, o Plano Nacional de Educação (PNE), terminará 2016 caminhando a passos largos para o fracasso. Combalido aos dois anos e meio de existência em meio a severas dificuldades de financiamento, o PNE corre o risco de tornar­se o segundo plano de educação brasileiro fracassado em menos de duas décadas. 

De acordo com o cronograma da lei ­ o PNE é previsto na Constituição e, na atual versão, regido pela Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014 ­ 2016 deveria ser o ano em que o Brasil, por exemplo, colocou na escola todos seus jovens de 15 a 17 anos, além de criar planos de carreira para todos os professores da educação básica e superior. 

O Plano Nacional de Educação, vigente no período de 2014 a 2024, traça 20 metas para todo os níveis de ensino no país ­ objetivos que envolvem ampliação de acesso e infraestrutura escolar, melhora na qualidade do ensino, e valorização da carreira de professor, entre outros temas. 

Embora medidas que não envolvem dinheiro também estejam sendo descumpridas, o principal desafio do PNE refere­se ao seu financiamento. A meta 20 do plano prevê, para que todos os avanços previstos sejam possíveis, elevar o investimento em educação a 10% do Produto Interno Bruto (PIB). 

Relatório de monitoramento do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (Inep), divulgado no início do mês, estima que o Brasil precisa investir R$ 225 bilhões a mais para cumprir o PNE. Objetivo considerado "impossível" até mesmo pelo Ministério da Educação (MEC). "O PNE tem 20 metas e todas dependem da 20ª", afirmou ao Valor a secretária executiva do MEC, Maria Helena Guimarães Castro. [Leia entrevista em PNE precisa passar por 'revisão', diz secretária do MEC] O que parecia difícil tornou­se impossível à luz da Proposta de Emenda à Constituição 55 (PEC 55), aprovada ontem em segundo turno e que estabelece um teto para as despesas públicas, que não crescerão acima da inflação por um período de 20 anos ­ que abrange justamente toda a vigência do PNE. 

Em entrevista no início de novembro, o ministro Mendonça Filho disse não querer "falar sobre meta do PNE, porque herdei um descumprimento de todas as metas". Especialistas em educação e representantes da sociedade civil, Estados e municípios, que participaram ativamente da formulação do plano ­ que tramitou por mais de três anos antes de ser aprovado de forma unânime no Congresso ­ veem com temor a possibilidade de que o cumprimento do plano saia definitivamente da agenda do governo federal, em especial do MEC. "Se há essa herança de descumprimento, o governo federal precisa mostrar para a sociedade o que foi descumprido e o que falta alcançar. Assim haverá transparência sobre os desafios que temos pela frente", diz o diretor do conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), Antonio Neto, que destaca que o PNE é a bússola que norteia todas as ações em educação nos municípios. Muitas das estratégias do plano, além disso, estão em andamento: como a definição de uma Base Nacional Curricular Comum (BNCC) para a educação básica. "A lei não pode ser optativa, é obrigatória, inegociável", diz Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. 

Ricardo Paes de Barros, economista­ chefe do Instituto Ayrton Senna e professor do Insper, critica o fato de que o país não tenha feito um diagnóstico sobre o que deu errado no primeiro plano decenal brasileiro ­ que vigorou de 2001 a 2011 ­ antes de partir para o segundo. "No primeiro plano, não se cumpriu nada. Ninguém tem a paciência de olhar de novo e saber: por que o primeiro plano, feito por dois caras geniais como o [ex­presidente] Fernando Henrique Cardoso e o [exministro da educação no governo FHC] Paulo Renato Souza, não funcionou". 

Para Barros, o fato de o PNE chegar a 2016 descumprido é "péssimo", e só uma avaliação clara sobre o que deu errado até agora tornará possível recuperar o atraso. "É como um avião quando cai. Por que se gastam horas e horas para examinar a caixa preta? Para culpar o piloto? Não, é para evitar que outros caiam pelo mesmo motivo". 

O sociólogo Cesar Callegari, diretor da faculdade Sesi­SP de educação e presidente da Comissão de Elaboração da Base Nacional Comum Curricular, lembra que o plano foi criado por lei justamente para ser uma política de Estado, e não ser interrompido ou descontinuado em meio a crises ou em mudanças de governo. "O PNE não é um plano nem da Dilma, nem do Temer", afirma Callegari. "São responsabilidades que o país entregou ao Estado, e não ao governo". 

Marcos Lisboa, presidente do Insper, considera positivo o fato que os gastos com Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação ­ Fundeb (Fundeb) e as transferências para Estados e municípios terem ficado de fora do limite pelo teto do gasto. Além disso, Lisboa destaca que os demais gastos com saúde e educação não poderão crescer menos do que a inflação do período. "A PEC 241 [assim chamada no Congresso, e posteriormente convertida em 55 no Senado] protege os gastos com ensino básico e procura evitar que o agravamento da crise fiscal contamine e fragilize as diversas políticas públicas", diz. 

O gasto em educação reduzido pela PEC afetará, diz Lisboa, principalmente as escolas técnicas federais e as universidades. "Esses gastos estão parcialmente protegidos, na medida em que não podem ser reajustados abaixo da inflação do ano anterior". Lisboa diz também que a PEC estimulará discussão sobre a eficiência e eficácia das políticas públicas. "Como podem os gastos terem crescido tanto sem a contrapartida de melhores resultados dos diversos programas?" 

Naercio Menezes, coordenador do centro de políticas públicas do Insper, é antigo crítico do PNE, e diz que problema fiscal dos Estados e municípios é mais grave para a educação do que a PEC 55. "A PEC do governo federal é um problema secundário [para a educação]. É preciso agora resolver a crise fiscal dos Estados e municípios, senão não vai ter dinheiro para investir na saúde e educação", diz. Para Naercio, o Brasil não tem condições econômicas e fiscais para cumprir as metas do PNE. "Eu sempre fui um pouco crítico em relação ao Plano Nacional de Educação, porque acho que as metas são muito difíceis de cumprir. Acho que o país não teria condições de gastar 10% do PIB, porque seria muito acima do que a OCDE gasta. Ainda mais com a crise fiscal", afirma Naercio, para quem o principal objetivo em educação deveria ser avançar no que está mais fraco: melhorar a nota dos alunos do quinto ano do ensino fundamental, do terceiro do ensino médio, e de matemática e português, sem aumentar a repetência. "Só. O resto é apêndice. Se atingir esta meta, está ótimo", afirma o economista. 

Maria Helena Guimarães Castro, que já foi presidente do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) durante o governo FHC e secretária estadual de Educação de São Paulo na gestão de José Serra, afirma que o MEC não desistiu de cumprir o PNE, embora algumas metas sejam muito difíceis. Ela vê, a partir de um debate com a sociedade, e não por iniciativa do MEC, espaço para que o PNE seja rediscutido durante a Conferência Nacional de Educação (Conae), que ocorrerá em 2018 com o objetivo de monitorar e avaliar o cumprimento plano e propor políticas e ações. 

O PNE atual, elaborado quando o ministro da educação era o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, foi considerado um avanço em relação ao anterior, justamente porque tinha uma meta que abordava como financiá ­lo. O contexto econômico era bem diferente quando o PNE foi aprovado, em 2014: a economia brasileira crescia e havia a perspectiva de que o petróleo do pré ­sal ajudaria a financiar os avanços previstos na lei, algo que nunca se concretizou de maneira expressiva. 

Nos Estados e municípios, que respondem majoritariamente pela gestão e oferta dos serviços de educação básica pelo país, o PNE continua tão relevante quanto antes. Em 2015, prefeituras correram contra o tempo para elaborar, no prazo exigido, a versão municipal de seus planos decenais. O presidente da União Nacional dos Dirigentes Nacionais de Educação (Undime), Aléssio Costa Lima, teme que o PNE será totalmente inviabilizado pela PEC 55, já que envolve ampliação em infraestrutura e aumento no número de alunos nas escolas. "O PNE não pode ser reduzido, nem abandonado", diz. 

Na opinião de Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, falta compromisso verbal em se cumprir o Plano Nacional de Educação ­ não o há no governo Temer, assim como não havia no governo Dilma. Na visão de Cara, o PNE já perdia espaço logo após seu nascimento, em 2014, justamente quando o governo Dilma adotou o lema "Pátria Educadora" e, em seguida, lançou um documento próprio totalmente descolado do PNE, com propostas para a educação básica formulado pelo então chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos, ministro Roberto Mangabeira Unger. 

Priscila Cruz, do movimento Todos pela Educação, defende que o PNE não pode ser tratado como um plano qualquer, porque representa um raro consenso entre políticos, comunidade educacional e sociedade civil. "Imagina em um país dividido como o nosso, ter um documento que tem 98% de adesão. É algo raríssimo que não se pode desprezar e nem arriscar enfraquecer o PNE", diz Priscila, que vê perda de investimento potencial em educação com a PEC 55. 

O Todos pela Educação prevê que, a partir do momento em que for desvinculado o percentual obrigatório de 18% da receita líquida da União a serem investidos em educação, tal percentual irá caindo ao longo do tempo, à medida que a economia se recuperar e a arrecadação de impostos voltar a crescer mais que a inflação. O volume de recursos que o governo federal aplicará em Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE) deixará de ser reajustado pelo crescimento da receita e passa a ser somente atualizado pela inflação, já a partir de 2018. Em 2026 (último ano do primeiro período da PEC), o mínimo aplicado em educação chegaria a apenas 14,7% da receita líquida. Já em 2036, chegaria praticamente à metade da proporção que é hoje. De 2028 a 2036, a perda acumulada seria de pelo menos R$ 302 bilhões. Na visão de Priscila, tal cenário eleva o risco de que a educação seja subfinanciada. "E mais: um investimento de 18% da receita líquida não tem sido suficiente, hoje investimos 23%", diz Priscila. "Mas precisamos avançar muito na efetividade dos gastos", ressalta. 

O professor Nelson Amaral, doutor em educação pela Universidade Federal de Goiás e especialista em financiamento do ensino público superior, estima que a PEC 55 tornará impossível que as instituições dobrem o número de matrículas para cumprir a meta 12 do PNE, que prevê elevar a taxa bruta de matrículas na Educação Superior para 50%. "Se não tem como atingir 10% do PIB, o plano acabou", afirma o autor do artigo "PEC 241 (ou 55): a 'morte' do PNE (2014­2024) e o poder de diminuição dos recursos educacionais". "A minha análise foi drástica em função da experiência com o PNE anterior", diz. "Foi um plano fracassado, porque se você não fala em financiamento. Com esse plano a expectativa era outra", diz Amaral, que estima que se a PEC 55 tivesse sido aplicada desde 1998 até 2015, a PEC teria reduzido em R$ 196 bilhões os recursos do Tesouro aplicados nas universidades federais. 

Callegari, do Conselho Nacional de Educação, diz que a desvinculação do gasto em educação à receita da União abre espaço para que os Estados queiram pleitear o mesmo. "Já fui secretário de Educação várias vezes e sei como é dramático. Em São Paulo eu tinha orçamento de R$ 10 bilhões por ano, e se esse orçamento não fosse carimbado para a educação, sempre apareceria um incêndio, sempre aparecem emergências que precisam do dinheiro. A vinculação é imprescindível", diz Callegari, que destaca que, historicamente, o gasto em educação sempre foi protegido no Brasil, desde o tempo do Império. "O único período em que não havia marcação do orçamento para a educação vinculado à economia foi durante o período ditatorial de Vargas", afirma.

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