Por Ligia Guimarães
Documento
mais
importante
da
educação
brasileira e
norteador
das
políticas educacionais dos Estados, municípios e União, o Plano Nacional de Educação (PNE), terminará 2016
caminhando a passos largos para o fracasso. Combalido aos dois anos e meio de existência em meio a severas dificuldades
de financiamento, o PNE corre o risco de tornarse o segundo plano de educação brasileiro fracassado em menos de duas
décadas.
De acordo com o cronograma da lei o PNE é previsto na Constituição e, na atual versão, regido pela Lei nº 13.005, de 25
de junho de 2014 2016 deveria ser o ano em que o Brasil, por exemplo, colocou na escola todos seus jovens de 15 a 17
anos, além de criar planos de carreira para todos os professores da educação básica e superior.
O Plano Nacional de Educação, vigente no período de 2014 a 2024, traça 20 metas para todo os níveis de ensino no país
objetivos que envolvem ampliação de acesso e infraestrutura escolar, melhora na qualidade do ensino, e valorização da
carreira de professor, entre outros temas.
Embora medidas que não envolvem dinheiro também estejam sendo descumpridas, o principal desafio do PNE referese
ao seu financiamento. A meta 20 do plano prevê, para que todos os avanços previstos sejam possíveis, elevar o
investimento em educação a 10% do Produto Interno Bruto (PIB).
Relatório de monitoramento do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (Inep), divulgado no início do
mês, estima que o Brasil precisa investir R$ 225 bilhões a mais para cumprir o PNE. Objetivo considerado "impossível"
até mesmo pelo Ministério da Educação (MEC). "O PNE tem 20 metas e todas dependem da 20ª", afirmou ao Valor a
secretária executiva do MEC, Maria Helena Guimarães Castro. [Leia entrevista em PNE precisa passar por 'revisão', diz
secretária do MEC] O que parecia difícil tornouse impossível à luz da Proposta de Emenda à Constituição 55 (PEC 55),
aprovada ontem em segundo turno e que estabelece um teto para as despesas públicas, que não crescerão acima da
inflação por um período de 20 anos que abrange justamente toda a vigência do PNE.
Em entrevista no início de novembro, o ministro Mendonça Filho disse não querer "falar sobre meta do PNE, porque
herdei um descumprimento de todas as metas". Especialistas em educação e representantes da sociedade civil, Estados e
municípios, que participaram ativamente da formulação do plano que tramitou por mais de três anos antes de ser
aprovado de forma unânime no Congresso veem com temor a possibilidade de que o cumprimento do plano saia
definitivamente da agenda do governo federal, em especial do MEC. "Se há essa herança de descumprimento, o governo
federal precisa mostrar para a sociedade o que foi descumprido e o que falta alcançar. Assim haverá transparência sobre os
desafios que temos pela frente", diz o diretor do conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), Antonio Neto,
que destaca que o PNE é a bússola que norteia todas as ações em educação nos municípios. Muitas das estratégias do
plano, além disso, estão em andamento: como a definição de uma Base Nacional Curricular Comum (BNCC) para a
educação básica. "A lei não pode ser optativa, é obrigatória, inegociável", diz Daniel Cara, coordenador da Campanha
Nacional pelo Direito à Educação.
Ricardo Paes de Barros, economista chefe do Instituto Ayrton Senna e professor do Insper, critica o fato de que o país não
tenha feito um diagnóstico sobre o que deu errado no primeiro plano decenal brasileiro que vigorou de 2001 a 2011
antes de partir para o segundo. "No primeiro plano, não se cumpriu nada. Ninguém tem a paciência de olhar de novo e
saber: por que o primeiro plano, feito por dois caras geniais como o [expresidente] Fernando Henrique Cardoso e o [exministro
da educação no governo FHC] Paulo Renato Souza, não funcionou".
Para Barros, o fato de o PNE chegar a 2016 descumprido é "péssimo", e só uma avaliação clara sobre o que deu errado até
agora tornará possível recuperar o atraso. "É como um avião quando cai. Por que se gastam horas e horas para examinar a
caixa preta? Para culpar o piloto? Não, é para evitar que outros caiam pelo mesmo motivo".
O sociólogo Cesar Callegari, diretor da faculdade SesiSP de educação e presidente da Comissão de Elaboração da Base
Nacional Comum Curricular, lembra que o plano foi criado por lei justamente para ser uma política de Estado, e não ser
interrompido ou descontinuado em meio a crises ou em mudanças de governo. "O PNE não é um plano nem da Dilma,
nem do Temer", afirma Callegari. "São responsabilidades que o país entregou ao Estado, e não ao governo".
Marcos Lisboa, presidente do Insper, considera positivo o fato que os gastos
com Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de
Valorização dos Profissionais da Educação Fundeb (Fundeb) e as
transferências para Estados e municípios terem ficado de fora do limite pelo
teto do gasto. Além disso, Lisboa destaca que os demais gastos com saúde e
educação não poderão crescer menos do que a inflação do período. "A PEC 241
[assim chamada no Congresso, e posteriormente convertida em 55 no
Senado] protege os gastos com ensino básico e procura evitar que o
agravamento da crise fiscal contamine e fragilize as diversas políticas públicas", diz.
O gasto em educação reduzido pela PEC afetará, diz Lisboa, principalmente as escolas técnicas federais e as
universidades. "Esses gastos estão parcialmente protegidos, na medida em que não podem ser reajustados abaixo da
inflação do ano anterior". Lisboa diz também que a PEC estimulará discussão sobre a eficiência e eficácia das políticas
públicas. "Como podem os gastos terem crescido tanto sem a contrapartida de melhores resultados dos diversos
programas?"
Naercio Menezes, coordenador do centro de políticas públicas do Insper, é antigo crítico do PNE, e diz que problema fiscal
dos Estados e municípios é mais grave para a educação do que a PEC 55. "A PEC do governo federal é um problema
secundário [para a educação]. É preciso agora resolver a crise fiscal dos Estados e municípios, senão não vai ter dinheiro
para investir na saúde e educação", diz. Para Naercio, o Brasil não tem condições econômicas e fiscais para cumprir as
metas do PNE. "Eu sempre fui um pouco crítico em relação ao Plano Nacional de Educação, porque acho que as metas são
muito difíceis de cumprir. Acho que o país não teria condições de gastar 10% do PIB, porque seria muito acima do que a
OCDE gasta. Ainda mais com a crise fiscal", afirma Naercio, para quem o principal objetivo em educação deveria ser
avançar no que está mais fraco: melhorar a nota dos alunos do quinto ano do ensino fundamental, do terceiro do ensino
médio, e de matemática e português, sem aumentar a repetência. "Só. O resto é apêndice. Se atingir esta meta, está
ótimo", afirma o economista.
Maria Helena Guimarães Castro, que já foi presidente do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira) durante o governo FHC e secretária estadual de Educação de São Paulo na gestão de José Serra, afirma
que o MEC não desistiu de cumprir o PNE, embora algumas metas sejam muito difíceis. Ela vê, a partir de um debate com
a sociedade, e não por iniciativa do MEC, espaço para que o PNE seja rediscutido durante a Conferência Nacional de
Educação (Conae), que ocorrerá em 2018 com o objetivo de monitorar e avaliar o cumprimento plano e propor políticas e
ações.
O PNE atual, elaborado quando o ministro da educação era o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, foi considerado
um avanço em relação ao anterior, justamente porque tinha uma meta que abordava como financiá lo. O contexto
econômico era bem diferente quando o PNE foi aprovado, em 2014: a economia brasileira crescia e havia a perspectiva de
que o petróleo do pré sal ajudaria a financiar os avanços previstos na lei, algo que nunca se concretizou de maneira
expressiva.
Nos Estados e municípios, que respondem majoritariamente pela gestão e oferta dos serviços de educação básica pelo
país, o PNE continua tão relevante quanto antes. Em 2015, prefeituras correram contra o tempo para elaborar, no prazo
exigido, a versão municipal de seus planos decenais. O presidente da União Nacional dos Dirigentes Nacionais de
Educação (Undime), Aléssio Costa Lima, teme que o PNE será totalmente inviabilizado pela PEC 55, já que envolve
ampliação em infraestrutura e aumento no número de alunos nas escolas. "O PNE não pode ser reduzido, nem
abandonado", diz.
Na opinião de Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, falta compromisso verbal em se
cumprir o Plano Nacional de Educação não o há no governo Temer, assim como não havia no governo Dilma. Na visão
de Cara, o PNE já perdia espaço logo após seu nascimento, em 2014, justamente quando o governo Dilma adotou o lema
"Pátria Educadora" e, em seguida, lançou um documento próprio totalmente descolado do PNE, com propostas para a
educação básica formulado pelo então chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos, ministro Roberto Mangabeira Unger.
Priscila Cruz, do movimento Todos pela Educação, defende que o PNE não pode ser tratado como um plano qualquer,
porque representa um raro consenso entre políticos, comunidade educacional e sociedade civil. "Imagina em um país
dividido como o nosso, ter um documento que tem 98% de adesão. É algo raríssimo que não se pode desprezar e nem
arriscar enfraquecer o PNE", diz Priscila, que vê perda de investimento potencial em educação com a PEC 55.
O Todos pela Educação prevê que, a partir do momento em que for desvinculado o percentual obrigatório de 18% da
receita líquida da União a serem investidos em educação, tal percentual irá caindo ao longo do tempo, à medida que a
economia se recuperar e a arrecadação de impostos voltar a crescer mais que a inflação. O volume de recursos que o
governo federal aplicará em Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE) deixará de ser reajustado pelo crescimento
da receita e passa a ser somente atualizado pela inflação, já a partir de 2018. Em 2026 (último ano do primeiro período da
PEC), o mínimo aplicado em educação chegaria a apenas 14,7% da receita líquida. Já em 2036, chegaria praticamente à
metade da proporção que é hoje. De 2028 a 2036, a perda acumulada seria de pelo menos R$ 302 bilhões. Na visão de
Priscila, tal cenário eleva o risco de que a educação seja subfinanciada. "E mais: um investimento de 18% da receita
líquida não tem sido suficiente, hoje investimos 23%", diz Priscila. "Mas precisamos avançar muito na efetividade dos
gastos", ressalta.
O professor Nelson Amaral, doutor em educação pela Universidade Federal de Goiás e especialista em financiamento do
ensino público superior, estima que a PEC 55 tornará impossível que as instituições dobrem o número de matrículas para
cumprir a meta 12 do PNE, que prevê elevar a taxa bruta de matrículas na Educação Superior para 50%. "Se não tem como
atingir 10% do PIB, o plano acabou", afirma o autor do artigo "PEC 241 (ou 55): a 'morte' do PNE (20142024) e o poder de
diminuição dos recursos educacionais". "A minha análise foi drástica em função da experiência com o PNE anterior", diz.
"Foi um plano fracassado, porque se você não fala em financiamento. Com esse plano a expectativa era outra", diz
Amaral, que estima que se a PEC 55 tivesse sido aplicada desde 1998 até 2015, a PEC teria reduzido em R$ 196 bilhões os
recursos do Tesouro aplicados nas universidades federais.
Callegari, do Conselho Nacional de Educação, diz que a desvinculação do gasto em educação à receita da União abre
espaço para que os Estados queiram pleitear o mesmo. "Já fui secretário de Educação várias vezes e sei como é dramático.
Em São Paulo eu tinha orçamento de R$ 10 bilhões por ano, e se esse orçamento não fosse carimbado para a educação,
sempre apareceria um incêndio, sempre aparecem emergências que precisam do dinheiro. A vinculação é imprescindível",
diz Callegari, que destaca que, historicamente, o gasto em educação sempre foi protegido no Brasil, desde o tempo do
Império. "O único período em que não havia marcação do orçamento para a educação vinculado à economia foi durante o
período ditatorial de Vargas", afirma.
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