domingo, 4 de dezembro de 2016

Criar ou agradar ou como eu quero envelhecer?


Leandro Karnal

O relógio marcava 23h. Muito tarde para o Rio de Janeiro de então. O autor situa a cena em 5 de agosto de 1875. Houve um pequeno jantar de aniversário para o jovem que completava 21 anos. Ao término, um zeloso pai decide elaborar um plano de vida para o filho. Assim começa o conto Teoria do Medalhão, de Machado de Assis.

O estoicismo marca o início da fala. A vida é uma loteria. Os prêmios são raros. Temos de aceitar as “glórias e desdouros” da existência. O futuro está à frente do rapaz. Que profissão lhe recomenda o pai? Ser medalhão...
Há um trajeto e um projeto. Ele deve iniciar agora o esforço. Empenhado, chegará ao patamar de medalhão aos 45 anos. Há medalhões anteriores, mas são gênios raros. 
O moço tem potencial. O pai constata que ele repete nos salões as opiniões tomadas das ruas. O filho tem uma mente que absorve mais do que cria: um indício de vocação para ser medalhão. 
Ser medalhão não é tão fácil. Há práticas a seguir: ler sobre retórica e jogar dominó, por exemplo. Há que fazer passeios pelas ruas, sempre acompanhado, evitando a solidão, oficina de ideias. Na fala, o jovem deve usar figuras como a hidra de Lerna e as asas de Ícaro, conhecidas de todos (bem, pelo menos na época de Machado). Tudo deve ser para “pensar o pensado”, coloca nosso bruxo do Cosme Velho na boca do pai. O objetivo é evitar a originalidade, a ideia que incomode, a fala que fustigue o senso comum. 
Importante cuidar da propaganda e divulgar seus jantares. O pai batiza o ato de “benefícios da publicidade”. Imperioso convidar alguns repórteres para ocasiões especiais. A imagem pública deve ser controlada.
O jovem pode tentar a carreira política, mas deve centrar discursos em questões secundárias. Acima de tudo, deve evitar a imaginação na fala. O jargão deve ser repetido, desde que pareça sábio: “Antes das leis, reformemos os costumes!”, frase de consenso universal e que nada expressa. O filho deve ser um membro da política para não provocar nada na política. Eis a síntese dos conselhos: “Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade”. 
O exercício de aconselhamento é encerrado uma hora depois. O pai assegura que a conversa daquela noite tem o mesmo valor do Príncipe de Maquiavel. 
O olhar crítico de Machado disseca o procedimento da Corte e seus hábitos. Um homem de respeito, um medalhão, uma pessoa tida por sensata seria, antes de mais nada, alguém capaz de não ofender ou desafiar com algo novo. A fala escandida, o riso preciso, a seriedade nos gestos seriam condições naturais para ser um homem de sucesso, um medalhão. 
O texto da Teoria do Medalhão dialoga com outro conto, O Espelho, no qual a alma humana é apresentada de forma dupla: uma que olha de dentro para fora e outra que olha de fora para dentro. Dos textos emerge a dicotomia entre o homem público e o homem interno e entre a aparência e a essência, temas tradicionais em Filosofia e Teologia. 
Evoco os sábios conselhos de Polônio ao seu filho Laertes, no Hamlet. Todas as afirmativas do cortesão são boas e também tratam sobre opções pessoais. Polônio parece acreditar na ética humanista, mas não a cumpre. O pai do conto Teoria do Medalhão não acredita nos valores sociais, mas admite que são indispensáveis ao sucesso pessoal. 
As falas dialogam com nosso mundo. Somos a era da curadoria e do aconselhamento, todos mirando na eficácia da ação e na realização pessoal. Vai a uma entrevista? Não se esqueça de se vestir como todos esperam e de não tocar em pontos polêmicos.
Depois que você for contratado por ser absolutamente igual e comum, a empresa procurará palestras e workshops sobre originalidade e empreendedorismo. Vai fazer uma redação do Enem? Não adote posições extremas, pois isso pode dar nota baixa.
Depois, no curso superior, você será livre para pensar. Curiosa dicotomia que seleciona pessoas para atividades tendo como condição prévia que elas demonstrem a ação contrária ao que se deseja no exercício da função. São contradições de mundo líquido. Onde inserir o atrito? 
Ao tratar da tumultuada comunidade de Corinto, Paulo afirmava que era bom que existissem divisões no grupo, para que se tornassem manifestos os que são comprovados (1 Cor 11,19). A ideia paulina gerou a máxima latina analisada na Suma Teológica de Tomás de Aquino: Oportet haereses esse (é bom que existam hereges). Para o direito, o contraditório é o caminho para a justiça. 
Seguir os conselhos da Teoria do Medalhão embasa uma opção de vida consagrada, bem-sucedida materialmente e aceita como normal. O medalhão envelhece tranquilo. Inovar, romper, quebrar paradigmas e buscar algo que esteja além do senso comum é um esforço que tem um custo alto. O inovador vive sobressaltos e críticas e envelhece também. Resta sempre nossa escolha. Bom domingo a todos vocês! 

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