segunda-feira, 28 de novembro de 2016

OS ÓRFÃOS DO PROGRESSO

MILHÕES DE CRIANÇAS CHINESAS FORAM DEIXADAS PARA TRÁS, NO CAMPO, POR PAIS QUE SEGUIRAM PARA A CIDADE EM BUSCA DE EMPREGO. ALEC ASH VIAJOU ATÉ UM VILAREJO DISTANTE, NAS MONTANHAS DE GUIZHOU, E CONHECEU ALGUMAS VÍTIMAS DO DESENVOLVIMENTO ACELERADO

ALEC ASH, PUBLICADO ORIGINALMENTE NA THE ECONOMIST 1843. BEATRIZ VELLOSO, TRADUÇÃO

Economia;China;Yang Xiaojun (à esq.) e Yang Dousheng  (no centro) brincam com um amigo (Foto: Liz Hingley)
Os pequenos generais
Yang Xiaojun (à esq.) e Yang Dousheng (no centro) brincam com um amigo ao lado de um estábulo em construção: longe dos pais, crianças passam parte dos dias soltas (Foto: Liz Hingley)

O mundo de Yang Xiaojun vai do bosque de bambus na encosta da montanha ao último campo de arroz que entra vale adentro. Ele tem 6 anos de idade, pode fazer o que quiser e não deve satisfações a ninguém. Ao lado de seu irmão mais novo, Yang Dousheng, e de um grupo de amigos, ele circula como e quando bem entende pelas fronteiras desse território. Nada o impede de rasgar a roupa num arbusto ou rolar numa poça de lama depois da chuva. Ele faz jus ao próprio apelido: Pequeno General. As outras crianças fazem parte do seu pelotão. Juntas, elas dominam o pedaço.

Cada novidade é um jogo; cada objeto, um brinquedo. Um monte de pedregulhos se transforma num outeiro a ser escalado – e, chegando ao cume, a garotada salta lá de cima. Um pneu abandonado se transforma em carruagem, uma vara de bambu vira lança, um galho faz as vezes de clava. Um banco de pedra vira pódio, obstáculo de corridas e quadro-negro. Todas as manhãs, o avô de Xiaojun deixa dois yuans (R$ 0,90) para o neto. Numa economia feita de balas que custam 1 mao (R$ 0,6) cada, a diária deixada pelo avô tem valor inestimável: os doces são trocados por outras coisas, ou compartilhados, e os papéis são largados pelo chão. Durante o dia, esse exército de crianças movidas a açúcar corre solto, sem supervisão. É raro ver adultos circulando por ali.

Os pais ausentes desses meninos e meninas ganham dimensões quase míticas. Eles existem sobretudo nas histórias contadas pelos avós, ao lado de heróis ancestrais e do Rei Macaco. Perguntadas sobre o paradeiro dos pais, as crianças citam províncias distantes: Guangdong, Zhejiang, Fujian. Às vezes a resposta se resume a “chuqule”: eles saíram. É um eufemismo comum para se referir a trabalhadores migrantes. Para um garoto de 6 anos, as palavras têm pouco significado, e falar dessas províncias é mais ou menos como dizer que os pais estão na lua. Aos olhos de Yang Xiaojun, o universo conhecido termina depois da curva da única rua que atravessa a cidade, nos arredores do vilarejo de Paimo, em meio às montanhas de Guizhou, onde ele nasceu.

Xiaojun e seus amigos são órfãos do progresso. Seus pais foram embora tempos atrás, para ganhar dinheiro nas cidades industriais que cresceram na esteira do boom econômico chinês. Raramente os filhos os seguem. E é muito caro contratar alguém para cuidar das crianças enquanto os pais trabalham. Além disso, o governo limita o acesso dos filhos de migrantes às escolas, com o objetivo de controlar os efeitos da urbanização acelerada. Os netos acabam ficando sob os cuidados de avós que têm pouco controle sobre os pequenos. É uma história comum. Não é difícil encontrar vilarejos no campo onde a população é composta apenas por velhos e crianças, onde o grosso da população em idade ativa partiu para a cidade em busca de emprego. Seus filhos e filhas são conhecidos como “os deixados para trás”.

De acordo com uma estimativa da Unicef, 29 milhões de crianças chinesas perderam ambos os pais para um emprego num lugar distante, e 61 milhões (quase a população da Grã-Bretanha, ou o equivalente a todas as crianças que vivem nos Estados Unidos) perderam um dos pais da mesma maneira. Há tempos as autoridades chinesas não parecem inclinadas a se solidarizar com as dificuldades impostas aos pais migrantes pela realidade econômica e pelas regras do hukou (registro de domicílios). Zou Ming, vice-ministro de assuntos civis, já declarou: “Alguns pais irresponsáveis têm filhos e os deixam para trás, sem cuidados, causando graves prejuízos à saúde física e mental dessas crianças”. No início deste ano, o Conselho Estatal da China reconheceu a dimensão do problema e anunciou propostas para reduzir os impactos da migração, oferecendo cuidados para crianças nas regiões agrícolas e incentivos para que os pais levem os filhos caso se mudem para outra cidade.

As medidas são resultado de alguns efeitos dolorosos dessa tendência. Em meados do ano passado, na província de Guizhou – uma das mais pobres da China –, quatro irmãos “deixados para trás”, com idade entre 5 e 14 anos e vivendo em condições miseráveis, cometeram suicídio ingerindo veneno para insetos. De acordo com a imprensa estatal, eles prepararam um bilhete curto: “Obrigado por sua bondade. Sabemos que você quer o nosso bem, mas agora temos que ir”. Três anos antes, na cidade próxima de Bijie, cinco meninos de rua morreram intoxicados por fumaça depois de entrar num contêiner de lixo e acender um fogo para se aquecer.

EM VILAREJOS DO INTERIOR, A POPULAÇÃO SALTA DA ADOLESCÊNCIA PARA A VELHICE. OS ADULTOS MIGRARAM

Paimo fica no sudeste da província, uma região rural pobre, porém, menos miserável. Aqui vivem as minorias étnicas Miao e Dong, e também aqui começa a famosa topografia de carstes do sul da China: a paisagem não é tão exótica quanto as “montanhas dentadas” de Guilin, mas veem-se os primeiros sinais de saliências no relevo. Cada centímetro de terreno arável na encosta das montanhas é forrado por um carpete de campos de arroz, inundado de águas pluviais até a borda do campo adjacente. No verão chove praticamente todas as noites, e os trovões ecoam pelo vale. As libélulas zunem pelo ar e os insetos rastejam pelo chão. Uma frase poética em chinês diz que, do céu, cai “um mar de nuvens”. No horizonte, há uma permanente faixa de neblina.

Paimo fica a duas horas de carro da cidade mais próxima. O vilarejo é feito de casas de madeira com tetos de telha, espalhadas às margens de uma rua em formato de U, que abraça a montanha. Trilhas lamacentas sobem e descem pela encosta, para além dos campos e de outras casas escondidas na vegetação. De acordo com a contagem dos moradores, o vilarejo tem pouco mais de 450 casas. As estatísticas oficiais registram 2 mil moradores – quase todos têm o sobrenome Yang. O consenso geral é de que metade da população foi embora. A palavra Paimo pode ser traduzida como “desarrumado”. Se o nome tivesse sido uma escolha deliberada, não poderia ser mais adequado: nesta cidade onde a maioria dos habitantes tem menos de 8 ou mais de 60 anos, reina uma sensação de desarranjo e abandono.

Eu passei seis dias em Paimo. Em poucos lugares da China me senti tão acolhido. Por ser remota e declarada uma “região étnica autônoma”, a cidadezinha é, em muitos sentidos, uma sociedade autossuficiente e fechada em si. Os adultos de Paimo vão embora rumo ao resto da China, mas o resto da China não quer saber de Paimo. Os agricultores cultivam tudo o que comem e não precisam de quase mais nada. A maioria das refeições inclui arroz e legumes fritos, ou brotos de bambu mergulhados numa pasta caseira de pimenta. Nas datas especiais, mata-se um leitão, come-se um peixe de rio ou um balde cheio de caramujos com conchas espiraladas – animais que habitam os campos de arroz. Quase todas as casas fermentam o próprio vinho branco feito de arroz, que serve para afastar o frio noturno (e também para acordar um ou outro habitante pela manhã).

A montanha oferece alguns luxos ocultos: tabaco produzido localmente, fumado em cachimbos talhados a partir de compridas varas de bambu com uma pequena tigela de argila presa à ponta. Na loja de balas, os cachimbos são vendidos por 1,5 yuan. Nos arbustos é possível encontrar framboesas selvagens e folhas de mostarda chinesa – mas é preciso saber onde procurar. Há também plantas de índigo, de onde se extrai uma tinta azul-escuro usada para tingir tecidos feitos em tear – uma tradição da minoria Miao. Hoje em dia, a maioria dos moradores vai à cidade comprar a tinta e o tecido. A etnia Miao é conhecida na China por suas roupas religiosas coloridas, mas a cultura desse povo vai além. Paimo pode ser imediatamente identificada como um vilarejo Miao graças ao enfeite azul que as mulheres mais velhas carregam na cabeça.

É este o reino comandado por Xiaojun e pelos outros pequenos generais. Quando cheguei, os meninos ficaram com vergonha daquele estrangeiro alto, que aparentava ter a idade de seus pais. Mas eu trazia balas nos bolsos – e é claro que ninguém havia aconselhado aquelas crianças a não aceitar comida de estranhos. No segundo dia da visita eu já havia me transformado na grande atração local. No terceiro, meu ar de novidade havia se apagado e eu já me sentia como se fizesse parte do grupo, seguindo os garotos pela cidade. Seis meninos que viviam com o nariz escorrendo foram os que conheci melhor: Yang Xiaojun e seu irmãozinho Dousheng (há algum tempo as minorias chinesas ganharam permissão para ter dois filhos); Yang Chengliang e Chengjin, que moravam na casa de baixo; e Yang Hao e Li Haifo, filhos dos anfitriões que abrigaram a mim e ao fotógrafo.

Quando fora da escola, eles se ocupam com qualquer distração que faça o tempo passar. Numa manhã de sábado eu os vi subir até o topo da montanha mais alta e se pendurar nos galhos das árvores como macacos; depois, escorregaram numa pilha de material de construção que estava ao lado de um estábulo semierguido, e foram enfiar os braços na água de um campo de arroz para ver até onde ia a lama. Uma das distrações preferidas é uma brincadeira inventada por eles mesmos: numa espécie de jogo de bafo, eles batem com as mãos em concha sobre uma pilha de pequenas cartas e tentam virá-las com a face para cima; as cartas de valor mais alto ganham das menores, até que um dos meninos fica com o baralho completo. Duas vezes ao dia eles retornam à casa dos avós para fazer as refeições quentes. Fora isso, vivem espalhados pela vila.


A UNICEF ESTIMA QUE 29 MILHÕES DE CRIANÇAS CHINESAS PERDERAM AMBOS OS PAIS PARA UM EMPREGO DISTANTE

A vida dessas crianças está mais para As Aventuras de Huckleberry Finn do que para Senhor das Moscas. Durante a minha estadia, elas não brigaram e nem se dividiram em grupos rivais. Era uma gangue de iguais, compartilhando dores e alegrias. Se um deles caía, machucava o joelho e começava a chorar, os outros se juntavam para ajudar. Nada mais natural: não havia nenhum adulto por perto para fazer esse papel. Enquanto eu tentava decorar os nomes de cada um, perguntei quem era irmão de quem. “Ele é meu irmão”, respondeu Xiaojun, apontando para um garoto que evidentemente não era seu irmão. “E ele é o meu irmão”, disse outro, soltando uma risada rouca. Todos começaram a apontar uns para os outros e dizer que eram irmãos. Embora fosse apenas mais uma brincadeira, parecia verdade.

O mundo de Yang Peihua é seu pedaço no campo de arroz. Aos 61 anos, o avô de Xiaojun ainda trabalha na terra todos os dias. Ele se levanta antes do sol nascer e alimenta o passarinho que mora na gaiola pendurada no alto da varanda de madeira. Depois, tira seu búfalo do pequeno estábulo e puxa o animal encosta abaixo, por uma trilha lamacenta e escorregadia, até chegar ao campo. No caminho, Peihua passa por um pequeno santuário enfeitado com penas coloridas e tigelas de bebidas alcoólicas, cheirando a incenso umedecido. Então ele tira as sandálias plásticas dos pés e passa para trás do búfalo, vestindo um short roxo, uma camiseta velha e amarela e uma meia no pé direito, amarrando uma corda comprida ao redor do tornozelo. Ele remexe a lama em busca do arado de metal, tangendo o búfalo para que ele comece a andar. Juntos, homem e animal desenham linhas ao redor do campo, durante horas, revirando o solo firme até a hora de voltar para casa e preparar o almoço dos netos. Depois ele desce a montanha novamente, para o trabalho da tarde.

À semelhança de todos os moradores do vilarejo, a profissão de Peihua é a agricultura familiar. O pouco alimento que sobra para ser vendido mal cobre os parcos gastos domésticos e alguns remédios. A família vive em Paimo há cinco gerações, e ele viveu boa parte dos anos de turbulência histórica na China. (“A Revolução Cultural foi o período mais amargo”, ele me disse, fumando seu longo cachimbo de bambu. “Agora está bem melhor.”) Mas quando seu filho mais velho, Yang Chenggui, virou adulto, todos os jovens em idade ativa já haviam saído de Paimo em busca de trabalho – a maioria rumo a fábricas em cidades perto do litoral, onde o salário era bem mais alto. Chenggui decidiu ir também, e partiu há 12 anos.

Seis anos mais tarde ele retornou, casado com Luo Honglan. Xiaojun nasceu na casa da família, e dois anos depois veio Dousheng. Marido e mulher logo voltaram para a fábrica, e desde então os meninos são criados pelos avós. Quando Xiaojun e Dousheng eram pequeninos, a mulher de Yang Peihua, Zhang Xiuyin, carregava os bebês nas costas, embrulhados num pano tingido no tradicional estilo Miao (todas as avós da cidade têm um pano parecido). Avô e avó iam trabalhar no campo, levando o búfalo e os netos.

Algumas lembranças do filho Chenggui estão espalhadas pela casa. Um diploma escolar amarelado, do ano de 1997. Uma foto do pai abraçando os filhos na festa do ano-novo chinês, quando o casal ganhou folga e passou duas ou três semanas com a família. Dois carrinhos de brinquedo, um vermelho e outro amarelo, presentes que os pais deixaram para os meninos. “Não queríamos que ele fosse embora”, disse Peihua, num tom seco. “Mas aqui ele não ganharia dinheiro, e a vida está mais cara agora.”

Sempre que eu perguntava a alguém sobre a situação das crianças deixadas para trás, a resposta era a mesma: “O que é que eu posso fazer?” É um refrão muito repetido na China, “mei banfa”. Significa, literalmente, “não tem outro jeito”. Todo mundo diz isso, dos motoristas de táxi em Pequim aos executivos estressados nos escritórios. Em Paimo, a frase é quase um mantra. O custo de vida está aumentando enquanto o preço do arroz continua o mesmo: “O que é que eu posso fazer?”. Quase ninguém vem comprar os tecidos tingidos porque a vila é muito distante: “O que é que eu posso fazer?”. As crianças vão crescer longe dos pais: “O que é que eu posso fazer?”.

O consenso geral é de que meninos e meninas estariam em situação ainda pior se os pais não tivessem ido embora – e, em muitos sentidos, isso é verdade. Paimo simplesmente não tem recursos suficientes para sustentar todos. Alguns pais procuram trabalho mais perto, na cidade de Danzhai, próxima à saída da nova autoestrada construída no pé da montanha. A região está em desenvolvimento (ao lado de um canteiro de obras, um cartaz diz: “combater a pobreza e melhorar de vida, no mesmo ritmo”). Investimentos oficiais têm o objetivo de urbanizar os arredores, mas mesmo os donos de pequenos negócios ou os operários da construção ganham menos do que os trabalhadores das fábricas.
Economia;China;Zhang Xiuyin com os netos Yang Dousheng e Yang Xiaojun (Foto: Liz Hingley)
Mãe-avó
Zhang Xiuyin com os netos Yang Dousheng e Yang Xiaojun: quando bebês, ela os amarrava em um pano nas costas e ia trabalhar com o marido no campo (Foto: Liz Hingley)

O governo, porém, não oferece nenhuma ajuda significativa. Yang Xuelan, minha anfitriã, disse ter ouvido falar de programas estatais que deveriam ajudar as crianças deixadas para trás. “Mas aqui na nossa vila não chegou um centavo sequer.” Depois da primeira tragédia em Bijie, em 2012, quando os cinco meninos morreram tentando se aquecer num contêiner de lixo, o governo municipal criou um fundo especial de 60 milhões de yuans (R$ 28 milhões) para enfrentar o problema e acompanhar todas as crianças que vivem nas ruas. Passada a tragédia do suicídio dos irmãos, em 2015, observadores independentes não encontraram nenhum vestígio de uso dos recursos para auxiliar as crianças.

A melhor ajuda vem de organizações beneficentes. Uma ONG (não registrada) com sede em Guiyang, capital da província, que distribui alimentos e roupas às famílias carentes da região, foi expulsa de Bijie pelas autoridades locais porque estava chamando a atenção para a situação de abandono das crianças. Sob a condição de anonimato, o fundador me disse que o governo central “até tem consciência da situação, mas a ajuda oficial acaba indo parar nas mãos de quem tem poder na região”. Ele acrescentou que, em relação às crianças, “o maior problema é segurança e educação”, além do possível “impacto negativo sobre a personalidade”, causado pela ausência dos pais na fase de crescimento.

Depois da nossa entrevista, saímos para jantar com amigos dele que trabalham em outras ONGs. O grupo incluía representantes de uma instituição que envia professores das cidades para o campo e da Liga Jovem Comunista – que, segundo me contou, entusiasmado, faz um trabalho de “orientação dos pensamentos da juventude”. Quando a conversa chegou às crianças deixadas para trás, o grupo começou a conversar entre si. O fundador da ONG com quem eu havia falado mais cedo afirmou: “A verdade é que não temos muito como ajudar esses meninos e meninas. A melhor coisa a fazer seria ajudá-los a ficar perto dos pais. Mas não podemos forçar os adultos a voltar para casa, e é impossível fazer as crianças irem junto com os pais. O que podemos fazer?”.

Paimo é grande o bastante para contar com uma escola de ensino fundamental. São duas casas, com um pátio, um escorregador e duas tabelas de basquete debruçadas sobre os campos ao sul da vila. As paredes azulejadas do pátio interno são pintadas com imagens de famílias felizes. Todos os dias de manhã, de segunda a sexta, os jovens alunos formam fileiras no pátio e seguem rotinas de exercícios que parecem danças, ao som metálico da música que sai de alto-falantes. O refrão de uma das canções era de partir o coração: “Mamãe, papai, me abracem”. Nessa parte da coreografia as crianças colocavam os braços ao redor dos próprios ombros e balançavam o tronco.

As três séries do ensino fundamental têm 59 alunos ao todo. Na casa vizinha, a creche tem mais ou menos o mesmo número de crianças. A maioria delas vai cursar o segundo ciclo do ensino fundamental no povoado de Yangwu, na periferia da cidade de Danzhai. São mais seis anos de ensino gratuito e obrigatório. Na prática, muitas abandonam os estudos. Menos da metade dos alunos do ensino fundamental II nas regiões rurais da China chega até o ensino médio. Para a maioria das crianças que vive nessas áreas – mesmo aquelas cujos pais não foram embora –, o maior obstáculo é a dificuldade de acesso a bons professores e recursos. Sem isso, a maior parte dos alunos não tem chance de entrar numa boa escola de ensino médio, e muito menos numa universidade. E assim eles acabam indo trabalhar nas fábricas, como seus pais e mães.

Numa manhã de domingo, eu estava sentado ao lado de Xiaojun e Dousheng quando os meninos receberam um telefonema dos pais. A ligação chegou pelo celular de Peihua (o aparelho é de uma marca antiga, V*WAL, com memória para salvar um único número). Com uma lentidão aflitiva, o avô finalmente encontrou o botão para atender à chamada em viva voz, de modo a escutar melhor. Depois de conversar com o filho no dialeto Miao, ele passou o telefone para Xiaojun, que falou com os pais num mandarim monossilábico.

“MEI BANFA” É UM TERMO COMUM NA CHINA. SIGNIFICA “NÃO TEM JEITO” . VIROU MANTRA NA VILA DOS MIGRANTES

– Você está obedecendo o vovô?, perguntou a mãe.
– Estou sim, respondeu o garoto, num fio de voz.
– Você tem dinheiro? Mamãe e papai vão te dar
um pouquinho.
– É... Ãhn rãn.
– No ano-novo eu vou te dar 100 yuans.
– Tá.
– A mamãe e o papai vão voltar no ano-novo.
Chenggui entrou na conversa.
– Tá.
– Papai te ama.

Depois de desligar, Xiaojun e Dousheng voltaram para o canto da varanda debruçado sobre a vila. Na gaiola, o pássaro de Yang Peihua soltou um pio. Os meninos brincaram em silêncio com os carrinhos vermelho e amarelo.

O mundo de Yang Chenggui é a mesa e o ferro à sua frente, no quinto andar de um edifício onde ele ganha a vida fabricando calcinhas. Ele vive na cidade fabril de Gurao, na costa leste de Guangdong, duas províncias a leste de Guizhou. Gurao ostenta orgulhosamente o título de “capital da lingerie” na China – embora eu tenha ouvido falar de outras cidades que também disputam o posto. Esta é uma das que fazem parte de um grande cinturão industrial que une os centros de Jieyang, Chaozhou e Shantou. Juntas, todas elas são conhecidas como Chaoshan. Ficam tão ao sul da China que chegam a ter palmeiras às margens das ruas e pedaços de lula nas tigelas de chow mein.

Saí de Paimo rumo a Gurao. Depois de conhecer Xiaojun e Dousheng, fui me encontrar com seus pais. Era o dia da folga dos dois (eles têm uma por mês). A primeira pergunta que me fizeram foi se eu tinha fotos recentes dos meninos. Eu havia gravado um recado de Xiaojun em vídeo, e eles assistiram duas vezes. Depois viram todas as fotos que tirei no vilarejo e mostraram, nos próprios smartphones, dezenas de imagens registradas por eles em suas visitas aos filhos. Uma delas era a mesma fotografia pendurada na parede de madeira da casa em Paimo: o pai orgulhoso abraçando os dois meninos.

Hoje com 30 anos, Chenggui saiu de Paimo em 2004, aos 18. Primeiro ele foi para Shenzhen, onde trabalhou durante dois anos numa siderúrgica ganhando 700 yuans (R$ 330) por mês. Depois começou a trabalhar no ramo de lingeries, em Gurao, onde mora há quase dez anos. O salário, que a princípio era de mil yuans por mês, chegou aos 4 mil que ele recebe hoje (R$ 1,9 mil). Em 2008 ele se casou com Luo Honglan, que nasceu num outro vilarejo no vale. Os dois decidiram ir juntos para Gurao e economizar o máximo que pudessem. A viagem de ônibus entre Gurao e Danzhai no feriado de ano-novo leva 24 horas e custa 400 yuans (R$ 190). Esta é uma das poucas despesas especiais no orçamento do casal. Eles vivem num pequeno apartamento onde estendem a própria roupa. Na sala, há um ventilador de teto.

Ambos trabalham na Julin Spotless Underwear Factory, numa daquelas oficinas de costura que impulsionam a impressionante economia chinesa de exportações. O turno vai das 8h30 às 22h, diariamente. A cada 30 dias, eles têm direito a um dia inteiro e dois meios períodos de folga. Os cinco andares da oficina são entulhados de mesas bambas e banquetas de plástico vermelho. É nesse ambiente que Chenggui e Honglan colam a ferro quente tiras de elástico sobre calcinhas coloridas e de baixa qualidade, vendidas no mercado interno. O chefe é um jovem de 23 anos, nascido em Guangdong, cuja família trabalha há dez anos no ramo de lingeries. O jovem executivo nos recebeu oferecendo chá em seu escritório, cuja parece é enfeitada por uma foto sexy de uma mulher usando calcinha e sutiã da J-Green – outro cliente para quem ele fabrica as peças. A carga horária é extenuante, mas as condições de trabalho não são as piores. A principal reclamação de Chenggui é o calor úmido do verão.

NAS CIDADES, OS PAIS TRABALHAM DAS 8H30 ÀS 22 HORAS, COM SOMENTE DOIS DIAS DE FOLGA POR MÊS

Economia;China;Crianças na escola da vila de Paimo (Foto: Liz Hingley)
O possível - Crianças na escola da vila de Paimo: “Mamãe, papai, me abracem”, diz uma canção coreografada pelo grupo. Nesse instante, elas abraçam o próprio corpo (Foto: Liz Hingley)

Ele e Honglan repetem o tempo todo que fazem tudo aquilo pelas crianças. É como se quisessem justificar a separação da família. Todos os meses eles mandam para casa uma porcentagem do salário, para comprar roupas, remédios e outras coisas para Xiaojun e Dousheng. A maior despesa é a creche, que cobra 1,5 mil yuans (R$ 700) por criança, por semestre. Aos quatro meses de idade Dousheng foi diagnosticado com uma doença do sangue: o tratamento custou 20 mil yuans (R$ 9,4 mil) e acabou com todas as economias da família. Se tivessem levado os meninos para Gurao, um deles teria de ficar em casa cuidando dos filhos – o que significaria uma renda bem menor. Por isso os dois não veem outra alternativa a não ser deixar os garotos para trás.

Mesmo assim, eles vivem preocupados com os meninos: são pais como quaisquer outros. Chenggui e Honglan sabem que as crianças vivem soltas em Paimo, e vivem assombrados pela possibilidade de um tombo maior, uma fratura e até coisas piores. As florestas da montanha abrigam cobras venenosas. Acima de tudo, eles temem as histórias de gangues de sequestradores que abduzem crianças para vendê-las no mercado de adoção – um fenômeno conhecido na China. Mas os medos vão além dos casos que correm no boca a boca. “Não sabemos se eles vão sofrer algum efeito psicológico”, diz Chenggui. “Queríamos ver nossos filhos crescerem, mas em Paimo o dinheiro não é suficiente.”

“É muito doloroso”, acrescenta Honglan. “Todos os anos voltamos para casa e ficamos com as crianças. Todo mundo está feliz. Na hora de tomar o ônibus de volta para cá, eu sempre venho chorando em silêncio. Toda vez que vejo uma mãe e um filho passeando na rua penso que meus filhos não têm uma mãe para brincar com eles. É duro aguentar.”

Todos os países que percorrem o caminho entre pobreza e prosperidade passam por esse tipo de deslocamento social. A transição chinesa, no entanto, vem ocorrendo assustadoramente rápido. Ela é coreografada por um governo comunista que, em última análise, deseja apenas reduzir ao mínimo o risco de uma revolta social – embora tenha alguma disposição para combater os efeitos colaterais negativos do progresso.

No futuro, quando novas gerações de chineses olharem para trás e observarem a transformação sofrida pela economia do país no início do século 21, elas sem dúvida serão agradecidas pelas mudanças – assim como poucos ocidentais gostariam de voltar no tempo e viver no período pré-Revolução Industrial. Mas o preço pago pelas gerações de hoje, por Chenggui, Honglan, Xiaojun, Dousheng e todas as famílias divididas da China, é extremamente alto.

“Meu coração está vazio”, disse Chenggui antes que eu fosse embora. “Mas o que é que eu posso fazer?”


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