sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Reforma na educação não valoriza professor

30/09/2016 ­ 05:00 

Por Monica Gugliano 

No dia 22, o presidente Michel Temer (PMDB) enviou ao Congresso Nacional uma Medida Provisória sobre a reforma do ensino médio. A MP prevê a flexibilização do currículo e uma especialização dos alunos: metade das aulas serão comuns a todos os estudantes, e as demais, escolhidas entre disciplinas organizadas por áreas de interesse do aluno ­ linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e ensino técnico. 

Havia ainda uma polêmica proposta de acabar com a exigência de aulas de artes e educação física no ensino médio, mas a ideia não prosperou. Essa regra passará a valer a partir do segundo ano letivo depois da aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). 


Desde então, a mudança que, segundo o governo, ajudaria a combater a evasão escolar e aumentaria o interesse pelos estudos, vem gerando acirradas discussões. Embora seja consensual a ideia de que o número de disciplinas e o conteúdo inserido nelas é inviável, especialistas contrários às propostas observam que não está claro como o novo modelo funcionará. 


Para Marieta Ferreira, doutora em história, diretora da Editora FGV e coordenadora do projeto FGV­Ensino Médio, alerta: também é preciso valorizar o professor. "Enquanto isso não acontecer, o Brasil não dará o salto de qualidade que a educação necessita", diz. "Deixar o aluno escolher as disciplinas, como está proposto, não vai impedir que ele abandone a escola ou fará com que o estudo seja mais atrativo.


" Lei, a seguir, trechos da entrevista: 


Valor: A senhora aprova a proposta do governo para reforma do ensino médio? 


Marieta Ferreira: Há bastante tempo é clara a necessidade de o ensino médio passar por modificações. Isso não surgiu com a Medida Provisória. Há um consenso de que se trabalha com um volume muito grande de disciplinas e de conteúdo e isso já vem sendo discutido na Base Nacional Comum Curricular que está em construção. Sou a favor da proposta de pensar em um projeto que torne mais acessível o ensino médio. O grande problema é que não está claro como isso será feito, o que seria ensinado, quais disciplinas serão oferecidas, como será essa flexibilização. 


Valor: A flexibilização do currículo, como está proposta, é factível? 


Marieta: É problemático abrir a escolha plena dos créditos, como se faz na universidade. Há muitos riscos na gestão desse modelo. Em boas escolas privadas e públicas, que funcionam muito bem, talvez seja possível implementar o modelo. Mas como isso será feito em escolas isoladas, no meio rural, por exemplo, sem infraestrutura alguma? De que forma essas escolas vão conciliar seus recursos com os interesses e as necessidades individuais dos alunos? Como essa escola vai atendê ­los e gerir isso? E nossos professores como vão trabalhar desse modo? Quais trilhas e roteiros seguirão? É preciso entender que não se trata apenas de uma escolha, mas da maneira como essa escolha será conduzida. 


Valor: A senhora acha que os professores estão preparados para a mudança tal qual ela está na MP? 


Marieta: Essa reforma do ensino médio, como outros projetos que a antecederam, esquece daquele que é o ponto crucial na educação brasileira: o professor. O governo mais uma vez deixa de lado o maior problema da educação, que é a mudança no papel e na valorização do professor. Enquanto isso não acontecer, o Brasil não dará o salto de qualidade que a educação necessita. Deixar o aluno escolher as disciplinas, como se propõe, não vai impedir que ele abandone a escola ou fazer com que o estudo seja mais atrativo. Como diria Antônio Nóvoa [reitor honorário da Universidade de Lisboa e candidato independente à Presidência em Portugal nas eleições deste ano], nada substituiu um bom professor. 


Valor: Porque os professores, em sua maioria, não são valorizados? 


Marieta: Esse cenário começa ainda na formação dos professores. A licenciatura é uma opção secundária mesmo quando é a primeira opção. O aluno que entra em um curso de licenciatura não pensa em ser professor. Ele se forma para fazer depois um mestrado, uma pós ­graduação. Muitos se formam para ter um título superior e prestar um concurso. A carreira de professor, apesar de tudo que se fala, não recompensa financeiramente quase ninguém. A formação continuada para os professores é ineficiente. Os professores sequer sabem como utilizar recursos de novas tecnologias em salas de aula. Desconhecem como transformar esses recursos em instrumentos atrativos que estimulem os alunos. 


Valor: E o que é preciso fazer? 


Marieta: Sabemos, por exemplo, que nossos alunos saem das escolas sem conseguir interpretar, sem entender o que leem. Não sabem pesquisar, distinguir entre todo o conteúdo que lhes é oferecido pela internet aquilo que vale ou não. Pode­se até ter muita informação. Acontece que informação não é conhecimento. É preciso que nossos alunos saibam transformar informação em conhecimento. Conheço muitos professores que, por semana, trabalham com 500 alunos. Como pode esse professor ler, corrigir esses textos regularmente, ajudar seus alunos a se transformarem? Precisamos refletir sobre qual a inserção e a compreensão do mundo que damos a esses alunos. E não é a eliminação de disciplinas que dará esse melhor entendimento. 


Valor: Muitos dos críticos das propostas assinalam que o governo não discutiu as ideias e editou uma Medida Provisória. Essa crítica está correta? 


Marieta: Há dois pontos: o conteúdo da MP, talvez de outra forma, vem sendo discutido há anos com especialistas e outros atores envolvidos no processo educacional e está em linha com os debates que levaram ao Plano Nacional de Educação e à Base Nacional Comum Curricular, em construção. Não há dúvida de que mudanças são necessárias. É consenso que é impossível seguir com o atual número de disciplinas e todo o conteúdo inserido nelas. Quanto a isso, não discordo.

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