LUCILA CANO
Colunista especialista em temas relacionados ao 3º setor; assumiu a coluna em 9/4/2010.
Dos milhões de refugiados que buscam abrigo pelo mundo, mas principalmente na Europa, 50 milhões são crianças, segundo dados divulgados pelo Unicef em 7 setembro. São números impressionantes, superiores a populações de diversos países.
Imaginar que uma massa humana em trânsito é composta por crianças, sem destino certo e sujeitas a toda sorte de perigos é de arrepiar até as criaturas mais insensíveis.
Neste 8 de setembro, os organismos internacionais ligados à Educação registraram mais um Dia Mundial da Alfabetização, com atenção redobrada ao grande número de analfabetos espalhados pelo planeta. São eles 758 milhões de adultos, dos quais dois terços são mulheres, segundo mensagem da Unesco.
A mensagem deste ano não se refere especificamente às crianças, mas, em 2014, em texto alusivo à data, a Unesco estimava 781 milhões de adultos e mais de 250 milhões de crianças analfabetos.
Com a marcha dos refugiados intensificada a partir de 2015, como será possível prover escola a milhões de crianças, se os países ditos civilizados se armam de muros para negar-lhes tudo?
Armadilha do medo
Por estratégias políticas que envolvem a permanência no poder em seus respectivos países e o jogo de interesses econômicos, líderes mundiais conversam, mas nada decidem. Quer dizer, decidem, sim, erguer barreiras àqueles que eles consideram invasores.
Tal postura desumana é apoiada por habitantes dos países europeus na medida em que cresce o contingente de refugiados. Todos têm medo de perder seus empregos, suas casas, seus bens materiais para um exército formado por uma maioria de crianças.
O resto do mundo, nós incluídos, olha, lamenta, discute, recebe refugiados de braços abertos, mas se mantém a distância. Tudo se passa como se estivéssemos assistindo a um filme de terror e assim seguimos, anestesiados diante de uma imensa crise humanitária que se alastra pelo mundo.
Diploma para a vida
Saber ler e escrever e entender o que se lê é uma das riquezas fundamentais do ser humano. Como se não bastasse a quantidade de idiomas e dialetos a desafiar a aproximação com outros povos, é com essa faculdade que nos habilitamos para a vida.
O analfabeto é, a seu modo, uma pessoa com deficiência. Pode ser facilmente enganado em situações corriqueiras e, muitas vezes, perigosas, como assinar documentos lesivos a ele, tomar medicação inadequada às suas necessidades, consumir alimentos vencidos ou prejudiciais à saúde, perder-se nas cidades, por ignorar os letreiros das placas de rua e dos itinerários do transporte público.
Mas, talvez, o que mais faça falta a um analfabeto seja o raciocínio, a formação de conceitos, a capacidade de interpretar mensagens e decidir, só possíveis em decorrência do primeiro aprendizado, que é saber ler e escrever.
Quando cultivamos o analfabetismo, formamos pessoas sem opinião que, de boa fé, são conduzidas a bel-prazer por aqueles que falam mais alto e que se expressam com gestos largos. Nem sempre a caminho do bem.
Não por acaso, os dois terços de analfabetos do mundo são mulheres e, em grande maioria, as que vivem em áreas rurais. Mais do que uma afronta à igualdade de gênero, impedir que as mulheres estudem e conquistem o seu diploma para a vida é uma afronta a qualquer ser humano. Historicamente, são elas que cuidam da educação de seus filhos e acompanham o desenvolvimento deles na escola. Privadas do saber, como poderão formar suas proles?
Junte-se a esse desafio a dramática situação das crianças refugiadas, mais de 50 milhões de meninos e meninas à margem da sociedade. Sem as mínimas condições de sobrevivência, como poderão eles ser alfabetizados, instruídos para a vida?
Os progressos contra o analfabetismo são expressivos, mas ainda aquém das imperiosas necessidades daqueles que se veem privados de seus direitos fundamentais. Afinal, com que letras escreveremos o futuro?
* Homenagem a Engel Paschoal (7/11/1945 a 31/3/2010), jornalista e escritor, criador desta coluna.
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