Suzana Herculano-Houzel
Carioca, é neurocientista treinada nos Estados Unidos, França e Alemanha.
Escreve às terças, a cada duas semanas.
Vim recentemente ao Brasil no mesmo avião que trazia a seleção paraolímpica americana. Era mais de uma centena de atletas, todos impressionantes por sua disposição e vitalidade, certamente eletrizados com a perspectiva de participar da competição de mais alto nível com que um atleta pode sonhar.
Poucos deles estavam em cadeira de rodas. Todos os atletas a quem faltavam uma ou duas pernas andavam de pé normalmente, tão hábeis e estáveis quanto eu ou ainda mais. Parte do feito se deve à qualidade das novas próteses, leves e bem articuladas, ou então de metal moldado na forma de um C que deixa de lado a anatomia para suprir as funções de amortecimento e impulsão que os ligamentos dos pés proporcionam.
Fiquei ali olhando-os embarcar, esperando minha vez, maravilhada com o desfile de ciência e tecnologia. Que bacana existir pesquisa básica sobre metais, polímeros e outros materiais que a engenharia pode então aplicar na prática –e também pesquisa básica sobre como o cérebro representa o corpo, que permite entender o feito desses jovens como consequência bem-vinda de uma propriedade pouco conhecida do cérebro, e não um milagre ou exceção.
Uns diriam que a capacidade do cérebro incorporar membros prostéticos está em sua plasticidade, mas eu discordo. Sim, o cérebro é plástico, capaz de se reorganizar de acordo com o uso que faz dele mesmo. Mas neste caso, a base é o oposto: o cérebro mantem a representação dos membros perdidos –a ponto de a grande maioria dos amputados continuar sentindo a parte do corpo que não existe mais.
São sensações reais, não "psicológicas" ou imaginadas, originadas no córtex cerebral que ainda representa o membro perdido, agora estimulado pelas representações das partes vizinhas, estas mantidas.
Com a prótese, contudo, o cérebro, que novamente enxerga e movimenta a parte do corpo perdida, volta a construir uma imagem multissensorial sua, encaixada no mesmo mapa corporal anterior. Basta haver movimento coincidindo com as ordens e percepções do cérebro e o que se move é literalmente incorporado: a prótese faz parte do corpo.
O que pouca gente sabe é que a representação cerebral do nosso corpo é construída a cada instante, de acordo com seus movimentos e a informação sensorial que chega de volta. Para o cérebro, nosso corpo não é; ele está, conforme ele se move.
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