quarta-feira, 14 de setembro de 2016

O que nos faz imbecis? "Por reação às nossas inseguranças, adquirimos certezas absolutas: não existe melhor contribuição para a burrice."

francisco daudt

Francisco Daudt

Francisco Daudt, psicanalista e médico, é autor de 'Onde Foi Que Eu Acertei?', entre outros livros. Escreve às quartas, a cada duas semanas.

14/09/2016  02h03

"Antes do meu primeiro casamento eu não era solteiro, era imbecil: tinha vergonha do meu desejo, pensava que apresentá-lo a uma moça seria um insulto, que elas deveriam ser tratadas como deusas em pedestais".

O relato de consultório, feito por pessoa inteligente, diz: a pessoa pode emburrecer ao longo da vida; essa burrice pode ser revertida.

Conceituando inteligência como a capacidade de se ligar dois ou mais arquivos de memória (que Richard Dawkins chamou de "memes") para formar terceiros, e de burrice a incapacidade de fazer tal coisa, constatamos que: a) a humanidade tem um predomínio de imbecis; b) erudição não é sinônimo de inteligência (há eruditos cuja cabeça parece um museu de aves empalhadas: são belos exemplares, mas eles não se cruzam nem procriam).

Mas se a imbecilidade é variável, o que nos torna imbecis? E o que facilita a inteligência?

Há crianças que se destacam pelo brilho, mas dificilmente se vê uma criança imbecil. Elas têm um despudor e uma leviandade de pensamento –e de palavra– que fazem sua inteligência brilhar. Isso lhes dá maleabilidade, agilidade e plasticidade de processamento de ideias, parte fundamental da inteligência.

Mas isso vai se perder: rapidamente a criança é apresentada ao que é próprio e ao impróprio, ao pensável e ao impensável. Começam a ser construídas cercas eletrificadas em seu cérebro: se ela ousa ultrapassar, toma choque. Na minha infância católica havia o pecado mortal de pensamento: eu iria para o inferno só por pensar, por exemplo, em sacanagem.

Começa aí a patrulha do pensamento, a "crimideia" orwelliana que vai nos emburrecer. Claro, vem ainda o politicamente correto...

Para piorar, na adolescência passamos a ter que lidar com assuntos de complexidade enorme, sem o menor preparo para isso: a sexualidade e as preliminares do mundo adulto. 

É quando começamos a sucumbir ao senso comum, não o dos pais (eles agora são o inimigo), mas o da tribo a que aderimos, no auge de nossa insuficiência: temos que nos homogeneizar, eliminar qualquer traço de diferença com relação a eles. Por reação às nossas inseguranças, adquirimos certezas absolutas: não existe melhor contribuição para a burrice.

Se não fosse suficiente, o adolescente ainda corre o risco da maconha, das drogas estupefacientes (fazedoras de estúpidos), além de se levar a sério. Levar-se a sério é pior que maconha, para emburrecer.

Mas crescemos. Aí mora nossa chance: se caminharmos para a independência, poderemos tomar o caminho de recuperar a inteligência.

Claro, ainda há ciladas pela frente: crenças absolutistas, políticas ou religiosas; novas tribos para aplacar inseguranças; neuroses (que nos aprisionam ao passado); depressão; a atração pelo dramático, que impede a reflexão.

Fico feliz por trabalhar como um "recuperador de HD": num ambiente seguro, o pensamento redescobre o despudor e a leviandade necessários para rever sua história e livrá-la do lastro de burrice que corrompeu seu processador. Uma vez separados o pensar e o agir, o primeiro escolherá em liberdade uma ação mais inteligente.

Logical Song - Written and Composed by Roger Hodgson - Voice of Supertramp



A Canção Lógica

Quando eu era jovem
Parecia que a vida era maravilhosa
Um milagre, ah era tão bonita, mágica
E todos os pássaros nas árvores
Cantavam tão felizes
Ah, alegres, brincalhões, eles me observavam
Mas depois eles me mandaram para longe
Para me ensinarem a ser sensato
Lógico, ah responsável, prático
E me mostraram um mundo
Onde eu poderia ser muito confiável
Ah, clínico, intelectual, cínico
Há momentos quando todo o mundo dorme
Em que os questionamentos são grandes demais
Para um homem tão simples
Por favor, diga-me o que aprendemos
Eu sei que parece absurdo
Mas por favor diga-me quem eu sou
Agora cuidado com o que você diz
Ou eles vão te chamar de radical
Um liberal, ah fanático, criminoso
Ah, por que você não assina o seu nome?
Gostaríamos de ver que você é
Aceitável, respeitável, ah apresentável, um vegetal!
À noite, quando todo o mundo dorme,
Em que os questionamentos são grandes demais
Para um homem tão simples
Por favor, diga-me o que aprendemos
Eu sei que parece absurdo
Mas por favor diga-me quem eu sou
Quem eu sou, quem eu sou, quem eu sou.

Nenhum comentário:

Postar um comentário