Nem um a menos
Os professores não podem desistir de nenhum aluno. Nem deixá-lo para trás. Cada estudante carrega um drama diferente que interfere nos estudos
Por Dad Squarisi*
7 set 2016, 19h40
O PARALELO É INEVITÁVEL. MÉDICO E PROFESSOR JOGAM NO MESMO TIME. Ambos trabalham com a mesma e a mais preciosa matéria-prima. A vida. Conjugam também o mesmo verbo. Salvar. Mas, no Brasil, um oceano os separa. Uns vivem no século 21. Os outros, no 19.
Se um cirurgião dos anos 1800 entrar hoje numa sala de operação, será incapaz, até, de reconhecer um bisturi. Um professor da mesma época dará a aula com a desenvoltura de então. Talvez encontre alguma maquiagem aqui e ali. Em vez do quadro-negro, quadro branco. Com sorte, eletrônico.
Na era digital, em que a inovação é a ordem, a educação continua analógica, voltada para as urgências da revolução industrial – horários rígidos, menininhos de uniforme, sentadinhos um atrás do outro, recebendo o mesmo conteúdo do mestre que detinha o monopólio do saber. Preparavam-se, à época, operários pra linha de montagem. Quanto mais iguais, melhor. Deu certo.
Ocorre que a fila andou. As crianças de hoje nascem digitais. Mas a escola, ao contrário da medicina, foi incapaz de fazer a leitura correta do tempo. Manteve-se no passado. Com a informação na palma da mão e as bibliotecas do planeta no Kindle, ninguém precisa do blá-blá-blá de pseudo-Googles para saber que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil, que Michelangelo esculpiu Davi, que Beethoven compôs aQuinta Sinfonia, que o Japão fica na Ásia.
Precisa, sim, aprender como encontrar a resposta do que procura e discriminar a mais adequada às suas necessidades. Aí o professor exerce papel insubstituível – pelo menos na fase em que o país se encontra. Há experiências de salas de aula totalmente robotizadas, em que só se encontram estudante e máquina. Daí por que a revista Forbes citou o professor do ensino fundamental como uma das profissões ameaçadas de desaparecer a partir de 2022.
Com a discussão do novo currículo nacional comum, o Brasil tem oportunidade ímpar de dar a virada. Poderá tirar os olhos do retrovisor e olhar para a frente. O que vê? Uma economia uberizada, sem intermediários, que eliminará centenas de negócios e milhões de empregos. Já é realidade metrô sem condutor, carro sem motorista, avião sem piloto, hotel sem recepção, banco sem bancário, arquivo sem arquivista, análise de dados sem estatístico, jornalismo sem jornalista.
Que homem preparar para um mundo em que os limites se derretem? A resposta vale um milhão de dólares. Um fato, porém, é indiscutível. A pessoa precisa ser capaz de ler e entender o que lê. A lei determina que, ao concluir o 3º ano, a alfabetização tem de ser uma etapa vencida. Eis o xis da questão. A Provinha Brasil, que testa a habilidade de leitura e escrita no 3º ano, mostra dados preocupantes.
Em língua portuguesa, nenhum estudante atingiu nível 8, o mais alto; 0,39% atingiu o 7; 1,65%, o 6; 8,09%, o 5; 11,98, o 4; 14,96, o 3; 21,73%, o 2; 18,11%, o 1. Nada menos que 23,10% ficaram abaixo do 1. Em outras palavras: a quarta parte das crianças permanecem analfabetas depois de, pelo menos, 3 anos de bancos escolares.
Das restantes, muitas apresentam falhas graves que lhes dificultará o acompanhamento das demais séries. Ficarão pra trás. A conta vai sendo cobrada ao longo da vida escolar. A moeda: desestímulo, desinteresse, indisciplina, repetência, evasão. Não por acaso, 1,7 milhão de jovens compõe a geração nem-nem – nem estuda nem trabalha. Tampouco se deve ao acaso o fato de apenas 16% dos moços frequentarem a universidade. Nada menos de 84% se perderam no percurso. Convenhamos: alguma coisa está torta.
Vale voltar aos médicos. Eles podem jogar luz sobre caminhos a seguir. Fiquei mais de dois meses em hospital de excelência em São Paulo (Albert Einstein) para transplante de medula óssea. Ninguém passa por tão longa internação a passeio. Tem-se a oportunidade de presenciar ao vivo o funcionamento das equipes de saúde. Impressiona a obstinação. Elas não desistem do paciente jamais. Mesmo quando os exames dizem que o prazo de validade está vencido, todos continuam a luta e conservam a esperança.
Uma das armas de que dispõem é a ciência. Os profissionais mantêm-se atualizados graças à formação continuada. Cursos (de saberes variados) fazem parte da rotina. Com o domínio dos avanços nacionais e internacionais, conhecem novas drogas e novos procedimentos. São capazes, pois, de escolher o melhor não para curar a doença, mas para curar o doente singular, com problemas próprios, diferentes dos demais que padecem do mesmo mal.
Prevenir é a palavra de ordem. Os possíveis efeitos colaterais têm pouca chance de se manifestar. Medidas prévias impedem que fatores extradoença interfiram no tratamento. Eficiente sistema de informação sustenta a coesão do grupo. Médicos, enfermeiros, nutricionistas, fisioterapeutas, psicólogos, secretários, administrador de banco de dados compartilham informações da evolução do quadro de cada paciente. A meta: não deixar nenhum no caminho.
O mesmo deve ocorrer com os professores, que não podem desistir de nenhum aluno. Nem deixá-lo para trás. Cada estudante carrega um drama diferente que interfere nos estudos. Cabe, primeiro, identificá-lo. Diretores, psicólogos, professores, orientadores, assistentes, secretários, merendeiras, bibliotecários, técnicos de informática estão na escola para isso. Depois, ajudá-lo a superar a dificuldade a fim de que pedras soltas aqui e ali não interfiram na aprendizagem. Trata-se da prevenção, que acena com o êxito e evita o desestímulo e a consequente trajetória rumo ao fracasso.
Nenhum elo do sistema é mais importante que o outro. Cada um deve conhecer o trabalho de todos. Diretor e demais profissionais precisam fazer residência em todos os departamentos – da cozinha à direção. Se apenas um setor sobressair, dificilmente afetará o conjunto. O Ministério da Educação apresenta dado arrasador. Mais de 800 000 professores receberam bolsas no valor total de 2,6 bilhões de reais a fim de adquirir habilidades para melhorar na alfabetização. Resultado: avanço zero.
Ser professor, assim como ser médico, não é idealismo. É profissão. Exige um plano de carreira sedutor, que atraia os cérebros que hoje fogem para outras carreiras ou se refugiam no serviço público. Os melhores, tal como ocorre na Finlândia, precisam querer ser professor por opção, não por exclusão. Metas claras, cobrança rigorosa e premiação do mérito formam tripé inseparável. Quem não corresponder pode e deve ser excluído.
Fazer o paralelo da escola com uma instituição de saúde de ponta não é gratuito. Escolas e hospitais com procedimentos improvisados, verdadeiros depósitos de gente e cemitérios de esperança, provaram ser a receita do cruz-credo. São parâmetros da mediocridade. Quando o serviço público abre mão da excelência, acende o sinal verde para que o setor privado o siga. Por isso a escola, como os hospitais de excelência, deve formar um clube cujo lema seja Nem um a menos.
O foco do hospital é o paciente. O da escola, o aluno. Cada um deve merecer acompanhamento de perto para que não se perca no caminho. Paulo, João, Maria ou Pedro são únicos. Com compaixão, vemos neles nossos filhos, nossos netos, sobrinhos, afilhados. Graças a uma escola acolhedora e de qualidade, jovens deixarão de engrossar as estatísticas da população carcerária. Ocuparão lugar de destaque em vez de celas desumanas, superlotadas e sem saída.
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